22/11/2012


A realocação da vila chocolatão ou um êxodo caboclo?

Professor Jose Luiz Ferreira


Em junho de 2011 a prefeitura de porto alegre realizou a realocação da Vila chocolatão: vários casebres à beira da Avenida Loureiro da Silva, no centro da cidade. Dentro desses casebres moravam brasileiros com pouca instrução, na maioria afro-descendentes. A miséria e a sujeira faziam parte parte dessas duzentas ou mais famílias que oficialmente eram 181 famílias e que apesar de tudo pareciam felizes e adaptadas ao papel social que desempenhavam. A transferencia apareceu ao mundo como modelo de realocação e apoiados por orgãos internacionais.

Parte do terreno do terreno da antiga favela pertencia ao município e a maioria do terreno pertence a unoião. O destino do terreno provavelmente servirá como estacionamento dos orgãos federais do entorno. A nova Chocolatão está situada à Avenida Protássio alves, 9099, bairro Mario Quintana ou Morro Santana. As casas são de alvenaria, dois quartos, sala conjugada com a cozinha, banheiro e um pátio murado. A nova vila é cortada por uma rua asfaltada, iluminada e que atende pelo nome de Quatro mil e cinquenta.

Até agora apresentamos aos leitores um modesto apanhado técnico para australianos, norte-am,ericanos e europeus verem. A partir de agora vamos refletir juntos sobre a radicalidade humana do projeto. A grande maioria dos moradores da antiga Vila Chocolatão eram catadores de lixo e vendiam o material a pequenos depósitos dentro da vila. Hoje no Residencial Nova Chocolatão há um grande galpão que recebe material da Prefeitura de Porto Alegre, separa e vende. O galpão pode trabalhar com aproximadamente sessenta pessoas em sua capacidade máxima, menos de hum quinto da população adulta profissionalmente ativa.

O custo realocação modelo é paga pelos moradores em contas de água, luz e mensalidades do imóvel. O transporte para quem precisa se deslocar para o centro da cidade, também é por conta dos realocados. A última conta de luz ou a primeira da nova moradia variou entre trinta, sessenta, cem, cento e cinquenta, e até quinhentos reais para os donos de comércio dentro do residencial nova chocolatão.

Este comentário com certeza não pode ser exportado nem para a Austrália, nem para Europa, talvez para os Estados unidos que está ficando mais pobre e mais vulnerável. A verdade é que os governantes responsáveis pela realocação não foram radicais no que diz respeito ao fator humano, nem foram competentes na gerencia de projetos habitacionais para afro-descendentes, pobres, fora do mercado de trabalho e sem o pensamento germânico ou anglo-saxônico que inspiraram os autores e construtores desse projeto que tem tudo para dar certo no papel, mas que tem grande dificuldade para se viabilizar entre os rostos morenos e olhares ingênuos dos novos moradores.



Não quero terminar essa reflexão sem afirmar que gosto muito de minha casa de alvenaria com cozinha  e banheiro, que gosto do bairro, do comércio, e que sou negão. Também não poderia deixar de afirmar minha auto-denominação de excluído por opção. Sinto-me a vontade de trabalhar para quem eu quero, fazendo coisas que acredito e denunciando coisas que repudio. Escolhi morar na antiga favela do chocolatão por que me sentia um excluído com curso universitário, e de fato muiotos de nós seríamos se quiséssemos ter pensamento próprio e não aceitássemos compartilhar com a desconstrução do bom-senso. 

Em memoria do amigo 
Jose Luiz Ferreira professor e morador da Vila Chocolatão.


PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES DA VILA CHOCOLATÃO
Construção das identidades dos catadores no processo de reassentamento

MARCELO KIEFER

Collage. Giovana Santini


Quando a Vila Chocolatão é transferida do Centro da Porto Alegre para Avenida Protásio Alves, 9099, na periferia, não só seus moradores, como a cidade,  se deparam diretamente com um momento crítico do processo inevitável de permanências e transformações.  

Muitas relações se alteram. Dentre elas a confrontação física que deixou de existir entre os prédios institucionais, representando os valores da sociedade, e a favela, compacta, representando o que está à margem dessa concepção.

Mas não é só isso. A troca de posição da vila na cidade, estabelecida por uma nova organização espacial e materialidade das casas, também determina outra forma de habitar, que entre outras coisas está relacionada ao trabalho, à diversão, à moradia e às relações humanas. Muitas opções de mudança e continuidade parecem se tornar mais acessíveis, mais próximas.

O processo de transferência é e foi um choque que põe a identidade dos moradores, como sujeitos e como comunidade, em uma zona de turbulência, e praticamente convida a todos, consciente ou inconscientemente, a revisar intensamente seus valores.   

Porém, todas as transformações que passam a se estabelecer partem da idéia de Vila Chocolatão e de sua vida pregressa no Centro. Partem das identidades que os sujeitos carregam a esse respeito e que serão confrontadas com os novos elementos, sejam eles considerados positivos ou negativos por quem quer que seja. 

Se apropriar ou não dos valores oferecidos pelas novas relações, considerá-los bons ou ruins, utilizá-los desta ou de outra forma, são ações particulares ou conjuntas que dependem do desenvolvimento das identidades, ou seja, de valores que estão permanentes nos sujeitos. Essa construção pode ser inconsciente ou consciente e mais ou menos conflitante. Partindo dessa idéias, todos os caminhos são possíveis, desde uma adaptação que promova um caráter redesenhado da Vila Chocolatão, com mais qualidade de vida e abertura de oportunidades de desenvolvimento cultural, social e econômico, até a desconstrução dessa comunidade, com os moradores voltando para o Centro em busca do antigo modo de vida.

Sem instrumentação e consciência sobre o processo de transformação que ora se apresenta de certa forma radical, os conflitos de adaptação poderão ser predominantes. Os sujeitos ficam mais resistentes, procurando as referências seguras naquilo que conheciam e onde pousavam suas identidades. Não que o novo endereço e as novas relações não possam ser também reconhecidos, “libertando” identidades dos sujeitos da antiga Vila que antes estavam presas na falta de oportunidade e recursos.      

Por outro lado, a idéia de conscientização sobre o processo de permanências e transformações abre caminhos para uma mudança legítima, não apenas resultante de uma imposição institucional ou circunstancial. A antiga Vila torna-se a nova Vila Chocolatão (agora afastada do prédio, cujo apelido lhe deu o nome) através de escolhas, desenvolvendo diretamente o sentimento de pertencimento nos sujeitos. Oportuniza-se o desenvolvimento local a partir dos próprios valores e potencialidades, mesmo que sejam poucos os recursos e auxílios externos, bem como mudanças na relação dentro da comunidade e entre a comunidade o restante da sociedade que reproduzem os valores de segregação cultivados pela sociedade ocidental.




OS CATADORES DA VILA CHOCOLATÃO

A IDÉIA DE COLLAGE NA VILA CHOCOLATÃO

GIOVANA SANTINI

Collage. Giovana Santini



"Os catadores são como anjos, eles possuem o atributo da universalidade, da collage, agrupam fragmentos e reagrupam pessoas, formando comunidades e organizando o (i) mundo"


Pelo princípio da analogia, o homem nomeia a natureza e em cada nome, uma metáfora. Por esse princípio a palavra Chocolatão, diretamente associada a uma barra de chocolate, foi usada para nomear o edifício da Receita Federal na cidade de Porto Alegre. A relação metafórica feita pela população não refere-se ao sabor, mas a forma retangular e a cor marrom do edifício - cuja relação com o contribuinte costuma ser amarga e indigesta. Dos devoradores de impostos aos devoradores de lixo, o nome se estendeu por proximidade para a Vila que nos anos 80 se formou atrás deste edifício.

As favelas podem ser consideradas frestas na ordem das cidades. Caracterizam-se pela precariedade física e humana resultante da exclusão de uma parcela da população que não conseguiu ser absorvida pela cidade formal. Essas pessoas são aquelas que já nasceram sem nenhuma esperança de trabalho ou a perderam junto com seu emprego, seus projetos, seus pontos de orientação, e a confiança em suas vidas. Nesse vagar pelas margens dos espaços cerrados, descobriram fendas e frestas.

A Collage é um processo de linguagem que usa imagens já existentes para explorar uma nova sintaxe. Nela o que conta é o que está além das circunstâncias aparentes e que sugere outra realidade. Em comum, favela e collage são indefinições, falta de determinação, falta de certeza, falta de contorno, vazio.

A vila Chocolatão, para quem não conheceu, localizava-se junto ao Centro Administrativo Federal de Porto Alegre; um terreno que pertence a União, delimitado pelos edifícios da Receita Federal, INCRA, Justiça Federal, Tribunal Regional Federal, IBGE, Serpro, e próximo a Câmara Municipal de Vereadores. Em resumo, a Vila estava na fenda, cercada por todas as instâncias de poder que unidas pretendiam e conseguiram transferi-la para longe. Ela era uma ferida nova, indesejada, que corroia a carne territorial do centro administrativo, e não se sabia como controlá-la. Transformou-se em uma ferida incurável a espera do momento de sua desaparição, e teve uma morte figurada quando foi trans-ferida para outra área da cidade.
Ferida é a verdade como evidencia. Para os que habitavam na Vila do CHocolatão esses processos decorrentes do abandono e da injustiça aparecem unidos em diversas maneiras como na fissura da pedra (crack) e sua loucura, nos processos de demolição do ser e agora do lugar. Quando a fissura passa a dominar o corpo, ela torna-se rachadura e o corpo fica entregue a morte, a ferida.

Collage. Giovana Santini

A inserção da Vila neste contexto propiciava o encontro de situações e condições contraditórias que colocavam sobre a mesma superfície territorial formalidade e informalidade, ordem e desordem, justiça e injustiça. Além desses fatores a Vila possuía uma característica específica que a organizava em todos os sentidos, a presença do lixo como matéria, através do trabalho de catação de seus moradores. O lixo, entendido como resto, refugo, material já visto e usado, é tanto a matéria-prima da collage que trabalha com recortes de revistas, quanto da construção dos barracos. É matéria viva em metamorfose. É também o espelho da sociedade consumidora que invertendo a imagem reflete todo o sistema de obsolescência das mercadorias, das imagens e do próprio homem.

Parte da Vila era composta por fragmentos de diferentes arquiteturas ou objetos que encontram-se no carrinho do catador que as unia formando as superfícies de suas moradas. Os materiais encontrados nos lixos, nas caçambas de detritos, por suas características de resíduos, foram libertos de suas funções originais - porta, janela, tapume - e apresentam-se livres para tornarem-se parede, cobertura, telhado, mobiliário, brinquedo. Assim eles construíam seus abrigos ante a inclemência do tempo e do abandono das autoridades durante mais de 20 anos. Os restos ou os abandonados encontravam-se e colavam-se, unindo-se um ao outro, compondo as superfícies dos barracos e das vidas. Collage é encostar, colar solidões!

O dinamismo da estrutura da antiga vila se contrapõe a atual Nova Chocolatão. Antes ela rompia a unidade e homogeneidade massificadora das caixas tradicionais da arquitetura das casas atuais, e permitia uma composição aberta as multiplicidades de aparências e personalização das casas.

A urbanização das favelas ou as tristes políticas de transferências não devem começar pela arquitetura, mas pelo desenvolvimento e revitalização da identidade do grupo ou comunidade que a constitui. É preciso respeitar o processo de criação e composição das moradias que revelam como a comunidade se vê e como ela deseja ser vista. Começa num consenso e não na simples construção de casa, ruas, praças, como uma imposição. Se este processo for entendido, pelas autoridades políticas e pelos técnicos, então, as construções podem ser projetadas para refletir a verdadeira identidade e as aspirações da comunidade.
A denominação dos seres e das coisas como convenção para designá-los é uma forma de dominação que cria referencias baseadas em juízos anteriores. É preciso olhar de novo o mundo e romper com a visão e os pensamentos estagnados do hábito e da rotina. A collage permite esse novo olhar através do ato de re-ver as imagens e os conceitos em si mesmos, perfurá-los e recriá-los.

Revendo a Vila do Chocolatão comecei a ver além e ver mais; ultrapassei as fronteiras do seu cercamento para ver uma beleza particular, a humanidade, a beleza divina de cada um, independente de sua casca, o que estava além da representação. E tudo que vi, que encontrei, que recortei, colei em mim. Quantas camadas, quantas superfícies nos constituem? Talvez sejam tantas quantas camadas faziam um barraco na Chocolatão.
Collage. Giovana Santini

Giovana Santini é arquiteta e mestre pela UFRGS com a dissertação Vila Chocolatão - encontros da collage na arquitetura. Professora da Univates e da Faculdade da Serra Gaúcha.