24/03/2009

MEMÓRIAS DO PROFETAS
Pedro Figueiredo

II


Apareceu um comprador. Este é o meu dilema. Não sei fazer isto. Não tenho jeito prá o negócio. O cara é um avião.
Pintamos o refeitório com o dinheiro das telhas vendidas. Ficou bonito, deu um sinal de limpeza. Falta alguns quadros no refeitório, O professor sugeriu que não pintasse o teto, mas surgiram sugestões de pintar o teto de azul. Talvez algumas plantas, aos poucos vamos deixando bonito, com mais vida verde.
Levei o professor Fuão ao Profetas num fim de tarde. Sentiu-se extasiado com as linha das elevadas olhadas de um novo ponto que com certeza ele nunca tinha visto. Visitou o Elias, o nosso morador de rua ecologista. Ele planta tudo que encontra, imagina roseiral em flor, codornas nestes lugares que foram destinados ao esquecimento de todos, menos daqueles que a iniquidade do sistema de morte os condenou.
Fizemos reunião do grupo de trabalhadores. Não conseguimos Ter ainda uma rotina, eles falham muito. Se pretende ter uma reunião de 2 hs., todas as semanas, e de quinze em quinze uma manhã inteira de formação. As brigas, desconfianças, são permanentes, parece que está na pele. A confiança está no que vem de fora. Vejo como muito importante o papel da gente - o educador popular - nestes momentos. Estou pensando que se nós contruísimos um tipo de relação com os grupos/coletivos produtivos em vista de colaborarmos com eles nem que fosse nesses momentos seria o suficiente, ajudaria muito. Desconfio que tocar o negócio eles fazem razoavelmente bem, o problema se dá muito nas dificuldades de dirimir os conflitos cotidianos. As pessoas vem com seus problemas, cansadas, seus filhos pequenos que ficaram em casa, os maiores com problema de drogas, o marido que não conversa ou está preso,( impressionante no profetas tem 6 homens presos). Quando tudo isso se junta no local de trabalho - pois ficam juntas 9 hs por dia – vira um problema que parece insondável. É preciso alguém que descodifique seus dramas, ajudando-as a entender as causas de tudo isso que sobre elas se abate.
Uma terceira mesa inaugurada. Mais três mulheres novas. O mesmo rodízio dos trabalhadores nos demais galpões se reflete aqui. Estes lugares são vistos não como empreendimentos onde possam serem construídos sujeitos, coletivos duradouros. São espaços onde a assistência social ronda de forma permanente. As mulheres saem todos os dias para a reunião da bolsa família, para apanhar o leite ou o ranchinho que uma igreja dá. Descobri que neste 15 de março uma das creches não abriu, e que janeiro e fevereiro passaram fechada. Imagina as creches de periferia de férias!!!. Tenho a impressão que é a única refeição que as crianças tem no dia. A gente nota um certo desespero no dia-dia das mães quando se fala das crianças, dos filhos adolecentes.
A Gladis chorou porque a partilha não saiu nesta Sexta-feira. Queria visitar o filho que está no presídio de segurança máxima de charqueadas. Elas – os familiares – tem que visitar os parentes com uma certa regularidade, porque este é um bom sinal para as autoridades do presídio, pois mostra que eles são queridos por familiares. Mas na mesa ela me contou que tem muito medo que aconteça o mesmo que aconteceu com o outro, no mesmo lugar, que dois meses depois de uma rebelião, foi-lhe entregue como doente mental.(ele era um importante traficante da vila dela) Ela me falou que ao menos ele estava aposentado, embora que muito pouco ele aparecia em casa pois rodava nas ruas de Porto Alegre. Ele é um destes negros, cabelos sujos que dormem fedidos nas calçadas do porto não muito alegre. Não é só a glades que tem filho em Charqueadas. A Neiva falou com orgulho do Andre seu companheiro atual, que graças a ela ele deixou de roubar, assumiu as suas três filhas, e hoje é bom companheiro. Noto que lá quem canta não é o galo. Falou também do irmão que está preso à 2 anos. A Neiva tem 26 anos com 5 filho. Cansou de tentar a bolsa família do governo. Ironia: Deu uma confusão com seu nome em São Paulo apareceu um nome igualzinho ao seu no computador, ela tinha que provar que ela era outra Neiva, foi na RF duas vezes, então desistiu.

foto: Samuel Finkbeiner
Ca(p)tadores de novas forças
Gladys Neves/2006

A leitura do texto “A representação de Matias” de Fernando Fuão, lido por ele mesmo, para a turma de 30 alunos, em silêncio, durante quase uma hora, deu início ao semestre. E ali estavam as palavras chaves que nos acompanhariam no Projeto do Centro Social dos Catadores de Papel: representação e corporação.
Representação é um termo bastante conhecido desde as experiências pré-escolares, cujas linguagens visual e gráfica oferecem um modo para explorar e expressar entendimentos do mundo. Porém para nós arquitetos, é a nossa linguagem, é como expressamos e materializamos uma idéia, um pensamento enfim um projeto.
A representação, conforme Fuão, mantém uma relação de essência com o duplo, o duplo corpo, entendido como corporação e corpo social, nessa multiplicidade agregativa que conforma a heterogênea massa da vida.
Contudo, como acontece com a criança, a escola e a cultura separaram a cabeça do corpo. “A criança tem cem linguagens (e depois cem, cem, cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. Pois dizem-lhe que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho são coisas que não estão juntas!” ( Malaguzzi, 1995).
O mesmo acontece com os excluídos, onde a sociedade separa o ser humano do cidadão, justamente “por não possuírem representações institucionalizadas de espécie alguma, passam a contar com sua única representação: o corpo, como suporte e escrita” ( Fuão).
Mesmo dentro da lógica da fragmentação gera-se uma aglutinação, semelhante à lógica da collage – “o que é a collage, senão encostar solidões?”. Segundo Fuão, todo corpo separado, amputado tende a se agregar a um outro corpo para gerar um novo significado, uma outra representação, guardando sempre relações de representatividade com o corpo de origem, mas se abrindo enquanto significações para novas representações.
Esse movimento dos corpos que muitas vezes, no caso da representação arquitetônica, tende a “perturbar a pureza da ordem arquitetônica”, constitui a “essência espacial da arquitetura “(Aguiar).
Na maioria das vezes prevalece na representação gráfica dos projetos arquitetônicos a negação dos corpos, das rotas, dos movimentos, salvo a “utilização dos carimbos desprezando e ignorando a singularidade de cada corpo, de cada personagem, ignorando principalmente as identidades de todos aqueles que não tem e nunca tiveram representação” (Fuão).
O animismo, para Aguiar, torna a representação mais real, através das plantas animadas, ou seja com a presença dos corpos e seu movimento. Para isso, houve uma preocupação gráfica na utilização de carimbos de calungas com identidades de usuários e visitantes, ora mais passivos, ora mais ativos, conforme a atividade.
Esta prática pouco usual nas pranchetas da faculdade – surpreendeu a todos, resgatando o preenchimento do espaço e não o vazio tão encontrado nas revistas de arquitetura.
A palestra da psicóloga Vilene Moehlecke# sobre o corpo que dança enriqueceu o repertório do corpo que trabalha, que leva nas costas um carrinho cheio de papéis, latas e ferro velho. Buscar esta diversidade de estilos e linguagens, a fim de provocar “um certo mover”, pode tornar o corpo num “captador de novas forças”.
O exercício de desenho da figura humana conduzido por Beatriz Dorfmann, junto com os alunos na sala de aula, reforçou a presença do corpo, despertando contornos e limites necessários para o equilíbrio entre o espaço “tratado” e seus protagonistas.
O tema proposto constituiu-se na re-qualificação arquitetônica do prédio existente da ONG da CEF:moradia e cidadania, através da proposta para um Centro Social destinado aos catadores de resíduos sólidos de Porto Alegre, baseando-se na análise e intervenção dos projetos apresentados pelos alunos do semestre 2005/1, da faculdade de arquitetura da UFRGS
Além do tema ser pouco freqüente na prática de Atelier, pelo seu aspecto social, foi reforçado pela intervenção num prédio existente, através dos projetos elaborados por alunos e não por grandes arquitetos, o que não desmereceu, por isso, o produto final.
A idéia da construção do cronograma de atividades em contínuo ajuste foi um critério proposital no decorrer do semestre. Causando algumas vezes uma certa “turbulência” por parte dos alunos, mas isso era de se esperar, pois trata-se de um projeto cujo Programa de Necessidades não está ainda estabelecido e consagrado nos manuais de arquitetura.
O objetivo principal do semestre com este projeto de caráter social foi muito mais que manipular um projeto existente dos alunos de semestre anterior, num prédio também existente, foi de “refinar habilidades de pesquisa quanto à exploração do design de materiais recicláveis” compatíveis com a realidade dos catadores, tais como garrafas pet, embalagens tetra pak, latinhas, tampas, sacos plásticos, etc.
É o que vemos nos relatos de Gabriela# sobre os inventos de rua, captando ”com afeto” os óculos, o aparelho de som, “como receitas de como transformar estas sucatas em peças de design quase industrial”
Gabriela percorreu o centro do Rio de Janeiro de 1998 a 2001, como ela mesmo manifesta:” procurei colher na rua, imagens de uma evidência quase invisível – os inventos de rua!”
Como disse Rubem Alves, a gente fica poeta, quando olha uma coisa e vê outra... é isso que tem o nome de metáfora.#
Os inventos de rua também aconteceram na sala do atelier PVII, através de luminárias de garrafas, de biombos de garrafas Pet, de iglus de Tetrapak, de fachadas de jornal, de cortinas de fios de plásticos, de pisos de CDs, de tapetes de tampinhas, enfim uma verdadeira loja de peças de design reciclável.
As maquetes foram o momento máximo do semestre, parece que ali realmente o Centro Social para os Catadores virou quase uma realidade, comprovada através da alegria do Seu Antonio ao imaginar-se perambulando pelo Centro.
E esta imagem perseguiu o semestre nas palavras do Douglas: imaginar-se perambulando no espaço; imaginar-se usando o espaço; imaginar-se se apropriando do espaço; enfim, imaginar-se em movimento. Neste momento, surgiram as plantas animadas, uma prática pouco freqüente, pouco atípica por incrível que pareça nos projetos de arquitetura. É como desenhássemos os limites físicos e psíquicos dos movimentos das pessoas dentro do projeto.
E daí em diante, a cenografia acolhe o espaço, revestindo de materiais leves ou de cortinas que se abrem e desvendam um mundo de sonhos e magias como um verdadeiro antídoto ao cotidiano dos catadores.
A luz e a cor também são elementos imprescindíveis para este ambiente.
A intenção do projeto foi oferecer ao mesmo tempo uma sensação de bem-estar físico com uma “felicidade psicológica” para os excluídos.
As experiências que acontecerão nas oficinas certamente oferecerão aos papeleiros a capacidade de descobrir e desenvolver novas habilidades e quem sabe novos talentos.
Sabemos que o lixo brasileiro é considerado um dos mais ricos do mundo e a catação informal sustenta sua reciclagem. Portanto, para uma exploração mais digna, uma das soluções é trabalhar a criatividade com solidariedade, a com-paixão com ação, transformando esses catadores de papel em “captadores de novas forças”. Uma simples letra que se encaixa, transforma o sentido e a atuação destes trabalhadores.
Enfim, o tema deste projeto VII – um Centro Social para Catadores de Papel, deve ser cada vez mais divulgado pela significativa importância social e pela prática projetual capaz de desenvolver (a ponto de devolver) a auto-estima dos papeleiros, tão bem expressada como um apelo de Jacques Saldanha para este grupo de excluídos.
A Arquitetura do Espetáculo terminou, comentou Figueiredo (Profetas da Ecologia), iniciamos um outro ciclo onde a arquitetura terá um novo papel: social e ecológico.
Quem será o usuário desta nova arquitetura? Alguns perambulam nas ruas, catam papéis, lixo, sob viadutos e avenidas com suas carroças e carrinhos entre crianças e cachorros...
E, nós arquitetos, qual o comprometimento com este fato nas nossas cidades, o que fazer com as montanhas de material reciclado proveniente das indústrias e das nossas casas, quais os projetos que faremos daqui pra frente?
Estamos diante de uma realidade onde os professores de Arquitetura e a própria Universidade ainda não se engajaram. Existem apenas soluções e atitudes pontuais, como esta que está sendo desenvolvida no semestre PVII da Arquitetura pelos professores Fernando Fuão, Douglas Aguiar e Julio Cruz que podem transformar não só os catadores, mas também os nossos alunos em “captadores de novas forças”




Espaços de triagem de resíduos sólidos na cidade de Porto Alegre. O caso da Associação Profetas da Ecologia II e outras reflexões


Bruno Cesar Euphrasio de Mello
também publicado em: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp465.asp



O lixo, a riqueza da pobreza
O que fazer com as toneladas de resíduos produzidos diariamente pelo voraz e insaciável movimento de produção, consumo e descarte é um dos grandes desafios das metrópoles atuais. Como Leônia, a cidade amontoa suas sobras sem saber como e onde esvaziar-se de seus desperdícios. Simplesmente afastar para longe dos olhos não condiz mais com os novos paradigmas ambientais. Mesmo que as preocupações ecológicas não habitassem as mentes e os debates apocalípticos do momento os aterros sanitários e locais de deposição final desses rejeitos não comportariam tal volume crescente de embalagens, garrafas, sacolas, papeis e material orgânico descartados.
Onde e como fazer o ciclo da reciclagem fechar-se? Quem limpa essa sujeira? Há um momento que a matéria da insuportável desordem sofre contundente mutação. Ao mudar de mãos. A pequena passagem do diário, coletado a partir do trabalho de campo escrito no inicio do contato com Associações de triagem explicita essa transformação. “Camila, bolsista como eu no trabalho com os galpões, a partir do contato com as unidades de triagem, passou a separar seu lixo. Certo dia contou-me que levou o lixo de sua casa para o ‘Profetas da Ecologia’. Com as sacolas nas mãos, ao entregá-las para uma das trabalhadoras, disse: ‘Toma aqui o lixo lá de casa para vocês.’. Na verdade não me lembro se foram exatamente essas as palavras. Mas me lembro exatamente da palavra lixo. Dessa eu não me esqueci. Não me esqueci desse termo porque, ao mesmo tempo em que Camila entregava seu ‘lixo’ a trabalhadora falava: ‘Que bom Camila que você trouxe material pra nós!’ Novamente não sei exatamente se a frase foi assim, mas o termo ‘material’ não tenho dúvida. Camila me relatou essa breve troca de palavras por conta do espanto gerado pela diferença de definição sobre o mesmo objeto.”. Usando como ferramenta o conceito de relativização - atitude importante de quem pretende “entender honestamente o exótico, o distante e o diferente, o ‘outro’” – é possível acessar o mundo de valores dos trabalhadores da reciclagem, perceber que o lixo organiza o cotidiano de quem com ele trabalha. Passa ele a fazer parte do limpo, do sustento, da renda. Há nesse caso o improvável, lixos limpos e lixos sujos. Limpos são os secos, passiveis de separação e venda. Sujos são os que não podem ser re-aproveitáveis, não tem valor comercial vão para o rejeito.
O lixo vira riqueza ao ser material potencialmente reciclável. Mas para que seja passível de ser re-inserido no processo produtivo ele tem de ser separado por tipos, acumulados em grandes quantidades e vendidos à industria. É pelas mãos dos pobres e dos desempregados que essa mutação se realiza a partir da separação nos galpões de triagem. Personagens que, como o lixo que consomem – transformando em matéria de organização de suas vidas e riqueza, o que é por outros descartado – são identificados como figuras agentes da desordem que “arrastam outras figuras como a violência, a doença, a fome.” Não mais satisfeitos com a distância das periferias tomam as ruas do Centro das cidades puxando seus carrinhos a cata do que pode trazer dinheiro.
Com ou sem o auxilio de ONG’s ou ideólogos de esquerda engajados na organização política e associativista visando o trabalho e geração de renda formaram-se na capital gaúcha um bom numero de Associações de trabalhadores da triagem. Os últimos números dão conta de dezesseis Associações ou Galpões de triagem de Materiais Recicláveis espalhados pelos bairros do Município de Porto Alegre. Para essas Associações convergem atualmente tanto o material da coleta seletiva organizada pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre quanto moradores de vilas populares e moradores de rua em busca de trabalho.
Notas gerais sobre os Galpões da capital gaúcha.
Grande parte das Associações de Triagem (ou Reciclagem) da cidade de Porto Alegre nunca contou com projeto arquitetônico elaborado para seus espaços de trabalho e permanência. Nesses espaços passam grande parte do dia, inúmeras pessoas em seus ofícios, mas também almoçando, lanchando, reunindo-se e discutindo os rumos da Associação. Os galpões surgiram num primeiro momento simplesmente como um espaço para a triagem, e mesmo os modelos de galpões construídos pela Prefeitura acabaram demonstrando um grande desconhecimento das dinâmicas envolvidas no trabalho dos catadores e de seus comportamentos. Tanto as melhores construções, como galpões, quanto as piores, simples telheiros improvisados, são em essência um grande espaço coberto onde se dá triagem, armazenagem e demais funções necessárias ao cotidiano dos trabalhadores. Há, em alguns casos, alguma seqüência de espaços elaborada a partir da linha produtiva. Todavia, a precariedade e inadequação das construções além das condições de insalubridade desses lugares sobressaem-se a qualquer pequena virtude.
Os espaços de Triagem diferem muito em relação à implantação ao sitio, acessos de pedestre e de veículos. Todavia há sempre a preocupação de que haja espaço suficiente e posição favorável aos veículos que farão descarga de material para dentro das gaiolas e aos que buscam para compra o material triado. Eles apresentam também diferenças relativas às técnicas construtivas (que vão desde construções inteiramente de madeira até outras de paredes portantes de alvenaria ou estrutura independente de concreto armado), às soluções de cobertura (treliças de madeira ou metálicas, telhas de fibrocimento ou de barro) e às dimensões gerais dos ambientes de trabalho. Percebe-se de modo geral que não há qualquer movimento de reforma ou periódica limpeza dos galpões. Quanto mais permanentes as construções, as instalações de água e sanitárias, quanto menos as construções requererem reparos e reformas melhor.
A seqüência da cadeia produtiva é praticamente invariável. O fluxo do lixo desde quando chega até sua disposição final já triado e pronto para a compra pelos atravessadores é muito similar. Próximo do acesso do caminhão do DMLU vindo das ruas há o grande espaço de acumulo do material ainda bruto. É a gaiola de armazenagem, que varia de volume nas diferentes Associações conforme a disponibilidade de espaço ou o volume de chegada. Essa gaiola tem duas aberturas, uma por cima para despejo do lixo e outra abaixo, por onde o material é retirado e posto nas mesas para ser separado. Nas mesas as sacolas são abertas e o lixo é selecionado. As mesas podem ser coletivas, para quatro ou cinco pessoas que orbitam ao seu redor, ou paralela à gaiola trabalhando cada triador individualmente. Das mesas todo o material é dividido nas bombonas, grandes tonéis de plástico ou ferro que tem a função de acumular por tipo os materiais. Essas bombonas quando cheias são transportadas para as baias ou boxes que acumulam em maior quantidade o que foi separado. São em geral os homens que transitam pra lá e pra cá com esses tonéis nas costas. Os galpões que contam com desnível entre o espaço das mesas e as baias facilitam o trabalho desses indivíduos. Fazem eles menos força para depositar esse material por terem que tirar pouco do chão as bombonas. As prensas, quando existem, ficam o mais próximo possível dessas baias. Os prenseiros, responsáveis pelo trabalho na prensa, são os responsáveis por pegar esse material ali estocado para criar os fardos. Em geral são homens também os que manipulam a prensa. Pode-se pensar que haja um domínio diferenciado por gênero – mesas para as mulheres e bombonas e prensa para os homens. Todavia, nos discursos dos trabalhadores essa diferenciação não se coloca. Quando há a necessidade de mulheres fazerem força elas não se afugentam com o esforço do trabalho. Ainda assim vemos o predomínio dessa separação nos galpões de triagem.
Os fardos prensados e prontos para venda são estocados dentro do espaço do galpão. Em momentos de grande estoque o trânsito de pessoas fica dificultado, além da dificuldade natural causada pela tradicional desordem e quantidade de materiais espalhados no interior das edificações. Os fardos ficam encostados onde é possível. Há galpões que reduzem esse acumulo vendendo semanalmente ou quinzenalmente o material pronto para a venda. A partilha da renda ocorre consequentemente com a mesma periodicidade. Há outros casos que as Associações optam por vender no fim de cada mês e dividir as rendas mensalmente. Há ainda Associações que preferem vender o material sem prensá-los para não gastar a parca renda advinda da triagem com a conta de luz. O organograma dos galpões é quase sempre muito confuso aproximando funções inconciliáveis como a gaiola de lixo e o local de preparo e consumo de alimentos. As baratas, moscas e ratos que transitam pelas sacolas multicoloridas não precisam deslocar-se muito para chegar, nesses casos, até a cozinha e o refeitório.
A estrutura administrativa é em geral organizada a partir de uma coordenação composta pelos próprios trabalhadores. As idéias desse tipo de Associativismo civil têm forte influencia de movimentos gerados desde as décadas de 70 e 80 no contexto político autoritário de ditadura militar passando pelos movimentos comunitários influenciados pelas orientações ideológicas e políticas de esquerda. Todavia, coloca-se a seguinte questão: O quanto os trabalhadores dos galpões aderem a essa “organização coletiva” por ideologia, por comodidade ou submissão?
Há nesse campo das reflexões e melhorias dos ambientes de trabalho das Associações de Triagem um vasto potencial de intervenção do profissional arquiteto disposto a contribuir com a luta pela melhor existência das camadas mais pobres da população. Infelizmente, frente a todas essas possibilidades de reconstrução não só dos espaços físicos, mas das identidades e da cidadania desses indivíduos a arquitetura não tem comparecido. Tem preferido ausentar-se desses locais sujos. Isso se deve à própria postura de profissionais alienados a realidade que circula pelas cidades e ao preconceito e medo em relação à pobreza, alem da falta de engajamento no debate sobre o papel social da profissão frente aos problemas brasileiros.
O caso da Associação Profetas da Ecologia II
O Profetas da Ecologia II formou-se no fim do ano de 2005 a partir da iniciativa de um pequeno grupo de catadores informais que, orientados por ideólogos políticos de esquerda - um Irmão Marista de longa historia de militância junto às camadas populares e um educador popular – ocuparam antigo espaço abandonado de lazer dos funcionários da Rede Ferroviária que liga os municípios da região metropolitana. Situa-se aí neste local a edificação que servia de suporte de banheiros e espaços de convívio e um túnel desativado nos fundos do terreno. Ali instalados, iniciaram suas atividades e fundaram a Associação que é a segunda versão de uma outra também fundada a partir da orientação do mesmo Irmão. Em pouco tempo já trabalhavam na Associação quinze pessoas, a maioria moradores de rua com baixa escolaridade e pouca capacitação profissional. Como a renda e as preocupações com a integridade física são pequenas os trabalhadores não contam com qualquer tipo de proteção individual, nem as mais básicas luvas para manipulação do material ou calçados protetores dos pés. Separam todo o tipo de resíduos passíveis de reutilização vindos das mais diversas procedências dentro do Município com as mãos, manipulando vidros e pisando sobre sacolas com desenvoltura. Preferem arriscar-se a gastar parte dos recursos da partilha com equipamentos de segurança.
O Profetas da Ecologia II diferencia-se dos demais espaços de triagem de lixo do município de Porto Alegre por não contar com galpão para separação de lixo ou qualquer tipo de construção edificada com essa especifica finalidade. O espaço de trabalho é, improvisadamente, um túnel desativado da rede ferroviária. Outro aspecto que o torna singular é a sobreposição, no espaço de domínio da associação, de habitação, trabalho e lazer. Mora-se na pequena construção localizada quase ao centro do terreno, trabalha-se no interior do túnel e a quadra esportiva deteriorada e os arredores do terreno é utilizado nos momentos de lazer.
Nossas primeiras visitas à Associação foram no inicio do ano de 2006. O espaço de moradia é, em planta, como um retângulo alongado de proporção 1X2 dividida quase pelo meio em duas grandes zonas: social e intima. Tendo entrado no lote pelo terreiro, sob vigília, tendo se aproximado da casa e esperado o convite sob a sombra protetora junto à porta, entra-se na casa pelo meio da zona social que acumula recepção, estar, escritório, preparo de alimentos, refeições e lavagem de roupa. Apesar de todas essas funções estarem agrupadas no grande salão percebe-se regiões mais especializadas que definem ações mais específicas. Quadros e bibelôs achados no lixo que chegam à Associação enfeitam as paredes e as mesas, pequenos arranjos de flores colorem o ambiente, alguns sofás são forrados por lençóis claros, outros com cobertores, escondendo o forro danificado. Panos postos como cortinas servem de portas fechando estantes de ferro contendo equipamentos de cozinha bem organizados e limpos.
Na zona intima, mergulhamos noutro universo, mais obscuro. Necessário chegar com mais cautela. Antigos banheiros e vestiários servem de quartos Há desfalque de azulejos nas paredes, outras foram construídas sem revestimento para melhor dividir os domínios, as aberturas estão quase sempre danificadas. Desta outra metade da edificação uma família de cinco pessoas têm posse de quase um terço, o equivalente a um antigo vestiário talvez. O restante do espaço comporta cinco espaços íntimos. A diferença de disponibilidade de espaço identifica uma diferença de hierarquia entre os que habitam metragens quadradas distintas. O espaço de maior metragem quadrada fica disponível à família citada, pois dela fazem parte os principais protagonistas da ocupação daquele local e da liderança e coordenação do grupo. Outros pequenos habitáculos – uns que mal comportam uma cama e outros que além do espaço de dormir tem sala – são para os habitantes que exercem menor influência sobre o grupo ou tem posição menos destacada.
O aspecto do lugar é de um espaço labiríntico e adensado. Os becos e vielas desse microcosmos adequam-se às pré-existências – paredes, estrutura e aberturas – e às necessidades de improvisação decorrente do novo uso. A montagem e divisão dessas células habitacionais, passagens e acessos do domínio íntimo, antes de serem desordem ou indefinição são complexidade de difícil apreensão a corpos e olhos destreinados. O estrangeiro se perde, não entende o que matéria inerte sutilmente comunica. Subjetividades distintas são acionadas valorando distintamente o mesmo lugar: Favelizado e confuso, ordenado e legível.
Todas, das maiores às menores, guardam algum equipamento doméstico. Os maiores espaços vão além da cama – colchão velho ou simples espuma forrada com lençol – e do guarda roupa encontrados nos menores. Têm TV, som, ventiladores, sofás ou cadeiras. Os ambientes são quase turvos de tão mal iluminados e mal ventilados. Pequenos enfeites adornam esses lugares – pequenas fotos, bonequinhas sem membros, vasos de flores, escudos do time de coração. Num desses espaços de moradia, talvez o menor deles, atrás da porta de madeira que sela um dos “quartos”, uma profusão de recortes de revistas com imagens de mulheres nuas, famílias reunidas e abraçadas, modelos desfilando belíssimas roupas, atrizes e personalidades que figuram na mídia com freqüência, informe publicitário de cerveja e desenhos. Todos fixados à porta com cola num grande mosaico de imagens que talvez embalem esperanças de futuro ou retratem fontes de desejos. É uma maneira de personalizar o espaço que, mesmo acanhado, pequeno, mal ventilado e iluminado, impregna-se do sujeito que nele abriga-se. É a forma de rodear-se de si em ambientes impessoais. São como os enfeites que tornam mais acolhedores apartamentos ou casas iguais às centenas, estandardizados. Como os pobres e expressivos enfeites e desenhos que personalizam as celas de Complexos Penitenciários postos lado a lado ao longo de extensos corredores.
Mais recentemente esses espaços de moradia e o amplo espaço coletivo sofreram modificações importantes. A Associação pleiteou junto ao Governo Federal, através do programa Fome Zero, uma cozinha comunitária e teve seu pedido atendido. Hoje há equipamentos de cozinha como fogões, fornos, panelas além de um grupo de mesas e cadeiras como refeitório. O espaço de moradia atrofiou-se. Só permanece a família que tinha como seu espaço de domínio o maior habitáculo e seus filhos. Atritos internos entre o grupo de moradores do local fizeram com que alguns abandonassem suas células de moradia. Atualmente há uma determinação de que aqueles espaços vagos não devem servir mais como moradia. Podem, em casos extraordinários, servir de passagem para alguém que tenha perdido a casa numa situação desastrosa. Mas essa possibilidade deve ser fugaz e não permanente.
Ao fundo do terreno, atrás da edificação íntimo-social, chega-se ao túnel desativado que serve de espaço de triagem. O pátio a sua frente acumula o lixo que chega da rua à espera de separação. São deixados entre as montanhas e o embaralhamento de sacolas plásticas caminhos para acesso do túnel além de espaço para pequenos puxados improvisados, cobertos com lona ou plástico, protegendo do sol os que trabalham fora. A imagem desse lugar é mutável, a paisagem depende da quantidade de material estocado a espera de trabalho. Vai desde cordilheiras e ilhotas de materiais diversos e coloridos animando a vista até só o chão poeirento e infecundo salpicado de pequenos vestígios de sacolas, pedaços de papel e tampinhas. Há aqui uma desvantagem em relação a outras unidades de triagem. O lixo velho tende a acumular-se por baixo dos mais recentes, lançados sempre por cima dos que já estavam no local, chegando assim mal cheiroso e deteriorado às mesas. Não há um movimento de renovação constante do material à espera de separação, um fluxo linear desde a chegada dos caminhões até a saída para as mesas. Esses movimentos de chegada e saída ficam embaralhados e o fato de o material ficar estocado a céu aberto, exposto às intempéries faz com que o material perca valor. Reduz-se assim a renda coletiva de todos os associados.
O amontoado de lixo quase tapa a entrada do túnel onde se dá a manipulação e separação do material. Este antigo túnel, usado de improviso como ambiente de trabalho, está em cota mais baixa em relação ao terreno de domínio da Associação. Tanto o chorume do que quase asfixia a entrada quanto a água da chuva tendem a escorrer para os pés dos trabalhadores. Vindo de fora, sob a luz ofuscante de um dia claro, entra-se num enigma ao vencer essa pequena diferença de cota. Dentro tudo é turvo. Esse ambiente de trabalho tem entre quatro e cinco metros de altura e largura e possivelmente mais de trinta metros de comprimento fazendo leve curva em direção a abertura voltada ao estuário Guaíba. A cobertura e as paredes são de concreto armado não revestido e muito encardidos, tornando o lugar mais escuro do que já é naturalmente. O piso é de terra batida mas os pés pisam chão mole e impreciso, tentando equilibrar-se em meio àquela profusão de embalagens, papeis, rejeitos e sacolas. Em duas mesas paralelas trabalham quatro pessoas na separação e mais uma fixa na ponta limpando-a dos rejeitos. Outros trabalhadores vêm e vão com bags, sacolas de lixo e material separado ou rejeitado. Como o espaço é apertado bombonas, sacolas, bags e pessoas ficam aglomeradas. A maior parte de seus dias essas pessoas passam nessas condições.
Dentro, diluído naquela espessa escuridão, um indefinido fervilhar fabril. Figuras incompletas percebidas à primeira vista por partes, indelineáveis como o lixo que com eles compunham o ambiente, como que mimetizados, fundidos. Acomodada a retina, distingue-se por entre sacolas, bombonas e mesas, os sujeitos úmidos, roupas empapadas de suor aderidas ao corpo, alguns quase nus para tolerar o calor. Ambiente infestado de moscas como que brotando às centenas como golfadas de dentro das sacolas de lixo. Com a má ventilação o ar fica estagnado.
Mesmo com as importantes mudanças implementadas no espaço de convívio, moradia e recepção de visitantes o espaço de trabalho não acompanhou estes avanços. Permanece atualmente idêntico ao presenciado nas visitas iniciais.
O cenário no interior do túnel mostra-se semelhante ao retratado pelo artista Henry Moore à época dos bombardeios de Londres durante a Segunda Guerra Mundial. O artista plástico inglês mais conhecido por suas esculturas, defrontou-se com a população usando as plataformas do metrô como abrigos temporários contra bombardeios. A visão resultante dessa triste experiência foram os Desenhos do Abrigo que foram realizados de memória pois o artista não se sentia à vontade de registrar pessoas naquela situação limite de tentativa de sobrevivência. Os desenhos de Moore trazem uma atmosfera suja e confinada, de figuras humanas com a mesma cor e contornos muito semelhantes ao do seu local de proteção, os túneis do metrô. Mas incrivelmente essas figuras apresentam-se calmas, dormindo. Nunca em atitudes bruscas ou intempestivas. Subterraneizadas, buscavam o suporte físico da última possibilidade de manutenção da vida. Nessa polaridade vertical entre o encima e o embaixo, entre o sótão e porão, Bachelard nos ensina que o teto é o espaço da racionalidade. O teto revela logo sua razão de ser, ele cobre. Os pensamentos ligados ao telhado são claros, límpidos. O universo da irracionalidade é o do porão. Esse é o espaço obscuro da casa, lá se esconde a irracionalidade, nas profundezas convivendo com ratos e baratas. No subsolo está provavelmente a face oculta da consciência, escondida nas trevas, envergonhada de revelar-se por ser suja e feia. Será que esses trabalhadores se escondem ou, acompanhando o lixo, são escondidos para que não sejam visíveis? É comum nas capitais Brasileiras essa atração magnética entre lixo e pobreza. E ambas existências, descartáveis a partir de um ponto de vista do mundo, são dignas de serem rejeitadas e afastadas. Todavia, tanto os problemas advindos do lixo como da pobreza teimam em se impor como temas impossíveis de serem desprezados.
O mesmo magnetismo que une lixo e pobreza associa também experiências de abandono. Dos sujeitos e das construções. Solitárias, solidarizaram-se buscando renovação. Desperdiçadas, inteligências latentes dos trabalhadores de poucas oportunidades, embalagens do universo do consumo e edificações inutilizadas, fundem-se distantes dos olhos dos que não estão dispostos em penitenciar-se pela feiúra do mundo.
Proposições arquitetônicas
A partir do contato com os diversos galpões de separação e a partir do entendimento mais aproximado dos fluxos, coreografias corporais e dinâmicas de trabalho com o lixo explicitam-se algumas diretrizes para uma análise arquitetônica mais criteriosa dos galpões e para um projeto mais bem elaborado.
Há as obvias determinações demandadas pela legislação municipal, código de obras, normas de segurança de incêndio, normas de segurança com relação à maquinaria, quantidade de luminosidade necessária para o trabalho junto às mesas, escolha de revestimentos laváveis, antiderrapantes e demais normas técnicas. Há ainda, evidentemente, as definições que são muito especificas a cada situação particular, pois são ligadas à implantação adequada em relação ao terreno, à topografia, à orientação solar, à ventilação e às estratégias de iluminação natural, conforto térmico, acústico, fluxo dos cheiros. No entanto há outras mais complexas e menos diretas.
O numero de trabalhadores é um dos primeiros e mais importantes dados para a construção de um galpão de reciclagem. É a partir da determinação deste numero que se definirão as áreas necessárias ao trabalho além das dimensões de cozinhas, refeitórios e demais espaços. No entanto é importante não arbitrá-lo unicamente em relação à área e recursos disponíveis ou à vontade de gerar mais numerosos postos de trabalho. A organização coletivista dos trabalhadores é um dos fatores fundamentais para seu bom funcionamento e a experiência identifica que associações com muitos indivíduos tendem a não funcionar muito bem. Fica muito difícil a gestão de todos os trabalhadores e a participação política efetiva nas definições e orientações do grupo. A maior parte das associações da cidade de Porto Alegre tem entre vinte e vinte e cinco trabalhadores. Algumas até menos. Parece que há uma seleção natural que acaba levando a essa quantidade de trabalhadores. Outro aspecto que pode limitar a quantidade de trabalhadores por associação é a relação entre entrada de material – que oscila sazonalmente de acordo com a época do ano, mas varia muito pouco – e a renda final repartida entre os trabalhadores. Um maior número de pessoas para a partilha faz com que potencialmente caia a renda geral já que a quantidade de lixo que chega para ser triado pouco muda. Sendo assim o numero de trabalhadores deve ser definido muito criteriosamente.
Os fluxos externos de chegada e saída dos caminhões trazendo lixo e levando material triado tem, além da relação com o entorno, íntima relação com os fluxos internos e a linha produtiva do galpão. No entanto priorizar os deslocamentos dos trabalhadores e dos materiais no interior do galpão em detrimento da acessibilidade de carga e descarga dos caminhões mostra-se mais importante. Projetando os fluxos externos a partir dos internos, e não o inverso, pode-se organizar bem os movimentos internos tornando-os menos sacrificantes, mais rápidos e menos desgastantes. Os caminhões que chegam e saem não são de propriedade das associações, a gasolina para seu deslocamento não sai da partilha regular. Podem circular um pouco mais para tornar mais fácil e produtivo o trabalho dentro do galpão. Dar preferência a elementos arquitetônicos como rampas, monta cargas em oposição a escadas que dificultam o deslocamento das cargas são opções bem vindas.
A definição do programa de necessidades trás uma decisão cabal na função social do galpão. Orientando o programa de necessidades fundamentalmente aos espaços relacionados à produção de material triado – gaiolas, espaços de mesas e bombonas, baias de armazenagem intermediaria, locais de prensagem e armazenagem de materiais além de espaços assessórios como cozinha, refeitórios, banheiros e escritórios administrativos – tem-se um galpão com um tipo de finalidade. Unicamente gerar renda a partir do trabalho com o lixo. Pode-se, no entanto, agregar ao programa ambientes que possibilitem benefícios sociais, crescimento e desenvolvimento humano além de novas oportunidades de capacitação profissional. Agregando um pequeno numero de outras saletas pode-se potencializar o caráter transformador do local. Transformador não só de lixo em riqueza, mas das pessoas. O planejamento desses espaços e dessas funções pode fazer parte de um processo sociabilizante maior onde o trabalho com a triagem representaria apenas a isca para o acesso a cidadania.
Há ainda a possibilidade de optar entre dois tipos de mesas para a triagem. A mesa ilha coletiva ou mesa linear individual. Na mesa ilha coletiva um grupo de quatro ou cinco trabalhadores posicionam-se ao seu redor. Essas mesas ficam próximas à gaiola de deposição do material que vem da rua, podendo estar com um dos lados menores encostado na gaiola ou afastado dela o suficiente para que os trabalhadores utilizem todos os lados da mesa. As bombonas ficam espalhadas ao seu redor. Na mesa ilha coletiva cada um dos trabalhadores fica responsável por separar um grupo de materiais. Um fica com garrafas e papeis, outro com sacolas e vidros, outros com isso e aquilo. Quando a sacola é aberta sobre a mesa cada um cuida dos materiais sob sua responsabilidade e empurra para o outro o que não é de sua alçada. Os mais lentos têm de acelerar seu ritmo para acompanhar a presteza dos companheiros de mesa. Por outro lado forma-se ali uma pequena comunidade de afinidade. Ao redor da mesa, frente a frente, as trabalhadoras conversam muito, contam casos, riem um bocado, lamentam-se das desilusões da vida. O grupo fica mais coeso e animado. A mesa linear individual fica posicionada ao longo de toda a gaiola de deposição do material vindo da rua. Os trabalhadores posicionam-se lado a lado e voltados para a gaiola. Concentrados no trabalho têm de se movimentar mais para lançar o material separado nas bombonas. Como não há especialização no tipo de material que cada um deve separar, há mais bombonas envolvendo essa trabalhadora. Os diálogos ficam dificultados pela posição de trabalho e distancia entre os trabalhadores.
São esses alguns poucos problemas passiveis de ocuparem as pranchetas dos que se dedicarem a propor soluções para galpões de triagem de resíduos sólidos, mas que, a partir das diminutas experiências e convívio com o universo dos espaços de trabalho com o lixo, podem servir de subsídios para projetos mais eficientes e humanos.