19/12/2015

Sobre extensão, diários e memórias


Sandra de Deus . 
Jornalista, professora associada, Pró-reitora de Extensão Universidade Federal do Rio Grande do Sul                                              


“Nos teus olhos opacos aprendo o que nos distingue.
Já repartes comigo a ciência e a paciência.
Quero contigo repartir a esperança,
 estrela vigilante em minha fronte e em teu olhar
 apenas um tição encharcado de engano e cativeiro”
( Thiago de Mello, 1981)


            Se não fosse pelo olhar de quem narra, pela esperança que este olhar me traz  eu não aceitaria a linda e difícil tarefa de apresentar este conjunto de relatos esperançosos, desafiadores e absolutamente complexos que chegam em minhas mãos: "Diários messiânicos", "Memórias do Profeta" e "Lixivia mundi". Ao mesmo momento em que me desafiam, me fazem transbordar de alegria diante de tão necessária  reflexão da universidade. Espero fazer aqui uma apresentação/reflexão condizente com os relatos extensionista. O contato com as diversas realidades, com as diferenças, com outras perspectivas e mesmo com a crítica são aspectos essenciais da formação profissional. Há, porém, um viés recorrente na formação universitária enquanto local de produção de conhecimento. Esse viés na maioria das vezes nos impede de viver e conviver com outros, de aprender no “chão da fábrica”, de aceitar e compartilhar experiências por mais diferentes a nós que elas sejam. Então, dividida entre a ousadia e o bom senso me atrevo a refletir sobre o conjunto da obra.
 O não compartilhamento e o descompromisso com questões sociais graves- sejam da arte ou da ciência- gera um distanciamento entre universidade, uma instituição social e com função pública, e a sociedade, que em última instância mantém a universidade como local de formação. Esta contradição tem pelo menos três componentes reais e cada vez mais perigosos: os currículos fechados, que são verdadeiras grades (como normalmente são conhecidos), em que os estudantes necessitam cumprir uma carga horária estruturada em créditos sendo muitos obrigatórios e poucos eletivos; o acomodamento tanto docente quanto discente e a própria estrutura universitária que se coloca distante do cotidiano, dos movimentos sociais, das demandas gerais da sociedade. Estes componentes não são  exclusividade desta ou daquela universidade. São da instituição universidade que acumulou, ao longo de sua história, importantes fazeres e, por opção ou necessidade,  deixou  de lado outros.
        Neste caso há que se abrir espaço para desconstrução de preconceitos históricos e extrair da extensão o que ela nos proporciona de melhor: a possibilidade de conhecimento e compreensão de realidades e comportamentos, a partir de vivências diferenciadas, ainda timidamente presentes em ações educacionais de um modo geral. Não há dúvida nenhuma que, considerando toda a importância da pesquisa e do ensino, realizar ações que envolvam outros interlocutores, que não apenas o professor e o aluno, agregam valor embora um esforço maior dos envolvidos. Contar uma história, falar dos dias e noites vividos e sonhados é sempre uma tarefa complexa, mas de muito prazer. Oscar Jara (2012:38) ensina que sistematizar é “refletir sobre as experiências, uma missão que recupera e reflete sobre as experiências como fonte de conhecimento do meio social para a transformação da realidade”. Contar experiências, sistematizar, permite superar a separação entre prática e teoria. Permite colocar no papel algo que vai, para muito além de um texto. Um sentimento que ficará escrito no tempo para que gerações futuras possam vivenciar o presente - que em breve será passado (mas também futuro).

            A Extensão é o lugar da "alteridade" por excelência. Onde a Universidade realiza o reconhecimento da diversidade sócio-cultural e etnicorracial e permite a construção e o estabelecimento dos compromissos necessários à leitura do mundo. Ao atuar nas dimensões estéticas e culturais, a extensão universitária pressiona o ensino e atualiza a pesquisa. Este movimento nos convoca não só a pensar o lugar da extensão na formação cidadã dos envolvidos, como reconhecer o seu papel real e objetivo na  estrutura da universidade, no cumprimento daquela que pode ser uma de suas tarefas mais generosas e instigantes, a de ser o local de formação, contribuição e promoção de propostas para melhoria da vida. É preciso ousadia, coragem e desprendimento. É importante sair da zona de conforto para experienciar novas realidades que incluem linguagens, processos e condições de vida diferentes. É preciso rever técnicas e passos, já conhecidos, e que são acrescidos de novas tecnologias, sem perder a perspectiva da vida que se vive, para compreender  o verdadeiro sentido da comunicação coletiva, de outros valores.
 “Qualquer começo é mergulhado em inseguranças e incertezas” diz Bruno E. de Mello em certo momento em seus "Diários Messiânicos". Mas é preciso começar e depois de começar as mudanças são tão significativas para os envolvidos que cada momento representa uma onda nova de energia, capaz de alterar o percurso inicialmente estabelecido, e não apontar para nenhum resultado a não ser aquele fruto das trocas e da experiência acumuladas ao longo dos dias. Se estes “diários”, estas sistematizações não são publicizadas ficarão guardadas em nossas gavetas e memórias, mas não servirão para nada porque não compartilhamos. Assim, ao ter o privilégio de ler os originais, me deparei pensando o quanto realmente a extensão universitária contribui para a melhoria da qualidade de vida das pessoas que não estão na universidade e o quanto impacta a formação de profissionais gerando gente apaixonada pelo outro, pelo novo/velho, pelo “fazer acontecer”. “Diários Messiânicos”, resumidamente, para que se entenda, desde o início, é uma aula de extensão universitária. Emocionantes, divertidos e reflexivos são os relatos de “Memórias do Profeta” do Educador Popular Pedro Figueiredo que, em diferentes trechos, narra os “achados” no material que vai para a reciclagem, o papel importante e decisivo das mulheres/mães, as disputas de poder, as traições e os amores. Traz vida que é vivida em condições, que dependendo do olhar, pode ser considerada   precária mas  que é rica de “vida”. “Lixivia Mundi” do prof. Fuão é uma poesia, ao dizer que “São poucos os que têm a sorte e a coragem de desligar-se do universo da reciclagem, da catação”, pois o “ triste da história é que não há ‘catarse’ no fim da catação. O cessar da catação será o abandono de muitas vidas”.  É bom saber que este conjunto de obras traz a delicia e a dor da extensão universitária. E retomada de bom senso convoco  o caro leitor  para  ler atentamente, conferir diários e memórias para compreender o que se faz e o que se pode  fazer quando a "vida vale a pena" e o quanto extensão universitária tem a ver com o viver melhor. Por favor, me socorre e Chico Buarque de Holanda :
"Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa" (Cálice, 1973)


REFERENCIA BIBLIOGRAFICA

JARA, Oscar. A sistematização de experiências. Pratica e teoria para outros mundos possíveis. Brasilia: CONTAG, 2012.





Coletânea de livros e manual resgatam o lado humano da reciclagem

Composta por três livros, a coletânea reúne textos, ensaios, artigos e diários dos autores e extensionistas Fernando Freitas Fuão (professor da Faculdade de Arquitetura da UFRGS), Pedro Figueiredo (educador popular) e Bruno Cesar Euphrasio de Mello (arquiteto e urbanista formado pela UFRGS). “Memórias dos Profetas”, de Pedro Figueiredo, “Diários Messiânicos: cotidiano de uma experiência de extensão universitária”, de Bruno de Mello registram, em forma de diário, fatos do cotidiano em coletivos de recicladores. Já “Lixivia (i)mundi”, de Fernando Freitas Fuão, reúne reflexões relacionadas à temática do lixo, aos moradores de rua, aos galpões de reciclagem e associações de reciclagem. Alguns fragmentos da coleção fizeram parte do blog Inscritos no Lixo.
Destinado a recicladores, educadores populares, prefeituras, técnicos ambientalistas, ONGs e demais interessados, o manual “Como construir e reformar um galpão de reciclagem” reúne critérios básicos para projetar um Galpão de Triagem de Resíduos Sólidos, assim como para reformar um existente.
O lançamento das obras ocorreu na manhã desta segunda-feira (14 de dezembro), na Sala II do Salão de Atos, e contou com a presença dos autores, da Diretora do Departamento de Educação e de Desenvolvimento Social, Rita Camisolão, e da Pró-Reitora de Extensão da UFRGS, Professora Sandra de Deus.
Durante o evento de lançamento, os três autores conversaram com o público. Em sua fala, Fernando Freitas Fuão destacou que os livros lançados são frutos de mais de uma década de trabalho e não teriam sido possíveis sem o auxílio dos bolsistas de extensão, aos quais agradeceu nominalmente. O professor também reiterou o apoio da PROREXT, em especial do DEDS, para a realização do projeto e das obras, e o papel da universidade em ‘buscar a rua’, as mudanças sociais, trazendo-as para dentro do ambiente acadêmico. Bruno de Mello ressalvou que, embora a universidade seja vista por algumas pessoas como “autoridade do saber”, a interação com a sociedade prova o contrário: são os estudantes, técnicos e professores participantes dos projetos aqueles que mais aprendem com as comunidades. Complementando a fala do arquiteto e urbanista , o educador popular Pedro Figueiredo afirmou que a Universidade sozinha não produz o saber: esse só se constrói através do encontro radical com os saberes populares e a sociedade.
Junto com a coletânea de livros foi lançado também o manual “Construir e reformar um Galpão de Reciclagem”, organizada pelo Prof. Fernando Fuão. Dividido em três partes (“Espaços de Reciclagem”, “Espaços Socioculturais” e “Gestão do Galpão”), o manual é fruto de doze anos de pesquisa e de experiências pelos galpões de Porto Alegre e é destinado todos interessados.
A distribuição dos livros e do manual é gratuita. Interessados devem entrar em contato diretamento com o Prof. Fernando Fuão através do e-mail: fuao@ufrgs.br