Sobre extensão, diários e
memórias
Sandra
de Deus .
Jornalista, professora associada, Pró-reitora de Extensão Universidade Federal do Rio Grande do Sul
“Nos teus olhos
opacos aprendo o que nos distingue.
Já repartes comigo a
ciência e a paciência.
Quero contigo repartir a esperança,
estrela vigilante em
minha fronte e em teu olhar
apenas um tição encharcado de engano
e cativeiro”
( Thiago de Mello,
1981)
Se
não fosse pelo olhar de quem narra, pela esperança que este olhar me traz eu não aceitaria a linda e difícil tarefa de
apresentar este conjunto de relatos esperançosos, desafiadores e absolutamente
complexos que chegam em minhas mãos: "Diários messiânicos",
"Memórias do Profeta" e "Lixivia mundi". Ao mesmo momento em
que me desafiam, me fazem transbordar de alegria diante de tão necessária reflexão da universidade. Espero fazer aqui
uma apresentação/reflexão condizente com os relatos extensionista. O contato
com as diversas realidades, com as diferenças, com outras perspectivas e mesmo
com a crítica são aspectos essenciais da formação profissional. Há, porém, um
viés recorrente na formação universitária enquanto local de produção de
conhecimento. Esse viés na maioria das vezes nos impede de viver e conviver com
outros, de aprender no “chão da fábrica”, de aceitar e compartilhar
experiências por mais diferentes a nós que elas sejam. Então, dividida entre a
ousadia e o bom senso me atrevo a refletir sobre o conjunto da obra.
O não
compartilhamento e o descompromisso com questões sociais graves- sejam da arte
ou da ciência- gera um distanciamento entre universidade, uma instituição
social e com função pública, e a sociedade, que em última instância mantém a
universidade como local de formação. Esta contradição tem pelo menos três
componentes reais e cada vez mais perigosos: os currículos fechados, que são
verdadeiras grades (como normalmente são conhecidos), em que os estudantes
necessitam cumprir uma carga horária estruturada em créditos sendo muitos
obrigatórios e poucos eletivos; o acomodamento tanto docente quanto discente e
a própria estrutura universitária que se coloca distante do cotidiano, dos
movimentos sociais, das demandas gerais da sociedade. Estes componentes não são
exclusividade desta ou daquela
universidade. São da instituição universidade que acumulou, ao longo de sua história,
importantes fazeres e, por opção ou necessidade, deixou
de lado outros.
Neste caso há que se abrir espaço para desconstrução de preconceitos históricos
e extrair da extensão o que ela nos proporciona de melhor: a possibilidade de
conhecimento e compreensão de realidades e comportamentos, a partir de
vivências diferenciadas, ainda timidamente presentes em ações educacionais de
um modo geral. Não há dúvida nenhuma que, considerando toda a importância da
pesquisa e do ensino, realizar ações que envolvam outros interlocutores, que
não apenas o professor e o aluno, agregam valor embora um esforço maior dos
envolvidos. Contar uma história, falar dos dias e noites vividos e sonhados é
sempre uma tarefa complexa, mas de muito prazer. Oscar Jara (2012:38) ensina
que sistematizar é “refletir sobre as
experiências, uma missão que recupera e reflete sobre as experiências como
fonte de conhecimento do meio social para a transformação da realidade”. Contar
experiências, sistematizar, permite superar a separação entre prática e teoria.
Permite colocar no papel algo que vai, para muito além de um texto. Um
sentimento que ficará escrito no tempo para que gerações futuras possam
vivenciar o presente - que em breve será passado (mas também futuro).
A Extensão é o lugar da "alteridade" por excelência. Onde a Universidade realiza o reconhecimento da diversidade sócio-cultural e etnicorracial e permite a construção e o estabelecimento dos compromissos necessários à leitura do mundo. Ao atuar nas dimensões estéticas e culturais, a extensão universitária pressiona o ensino e atualiza a pesquisa. Este movimento nos convoca não só a pensar o lugar da extensão na formação cidadã dos envolvidos, como reconhecer o seu papel real e objetivo na estrutura da universidade, no cumprimento daquela que pode ser uma de suas tarefas mais generosas e instigantes, a de ser o local de formação, contribuição e promoção de propostas para melhoria da vida. É preciso ousadia, coragem e desprendimento. É importante sair da zona de conforto para experienciar novas realidades que incluem linguagens, processos e condições de vida diferentes. É preciso rever técnicas e passos, já conhecidos, e que são acrescidos de novas tecnologias, sem perder a perspectiva da vida que se vive, para compreender o verdadeiro sentido da comunicação coletiva, de outros valores.
“Qualquer começo é mergulhado em inseguranças
e incertezas” diz Bruno E. de Mello em certo momento em seus "Diários Messiânicos". Mas é preciso
começar e depois de começar as mudanças são tão significativas para os
envolvidos que cada momento representa uma onda nova de energia, capaz de
alterar o percurso inicialmente estabelecido, e não apontar para nenhum
resultado a não ser aquele fruto das trocas e da experiência acumuladas ao
longo dos dias. Se estes “diários”, estas sistematizações não são publicizadas
ficarão guardadas em nossas gavetas e memórias, mas não servirão para nada
porque não compartilhamos. Assim, ao ter o privilégio de ler os originais, me
deparei pensando o quanto realmente a extensão universitária contribui para a
melhoria da qualidade de vida das pessoas que não estão na universidade e o
quanto impacta a formação de profissionais gerando gente apaixonada pelo outro,
pelo novo/velho, pelo “fazer acontecer”. “Diários
Messiânicos”, resumidamente, para que se entenda, desde o início, é uma
aula de extensão universitária. Emocionantes, divertidos e reflexivos são os
relatos de “Memórias do Profeta” do
Educador Popular Pedro Figueiredo que, em diferentes trechos, narra os
“achados” no material que vai para a reciclagem, o papel importante e decisivo
das mulheres/mães, as disputas de poder, as traições e os amores. Traz vida que
é vivida em condições, que dependendo do olhar, pode ser considerada precária mas que é rica de “vida”. “Lixivia Mundi” do prof. Fuão é uma poesia, ao dizer que “São poucos os que têm a sorte e a coragem de
desligar-se do universo da reciclagem, da catação”, pois o “ triste da história é que não há ‘catarse’ no
fim da catação. O cessar da catação será o abandono de muitas vidas”. É bom saber que este conjunto de obras traz a
delicia e a dor da extensão universitária. E retomada de bom senso convoco o caro leitor
para ler atentamente, conferir
diários e memórias para compreender o que se faz e o que se pode fazer quando a "vida vale a pena" e o quanto extensão universitária tem a ver
com o viver melhor. Por favor, me socorre e Chico Buarque de Holanda :
"Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa" (Cálice, 1973)
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa" (Cálice, 1973)
REFERENCIA BIBLIOGRAFICA
JARA, Oscar. A sistematização de experiências. Pratica e teoria para outros mundos possíveis. Brasilia: CONTAG, 2012.
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