01/08/2014

Os desafios aos gestores do Programa de Inclusão na Reciclagem da Prefeitura de Porto Alegre
PEDRO FIGUEIREDO

Na década de 70/80 os pobres expulsos do campo que chegavam às regiões dos grandes centros, juntavam-se aos pobres metropolitanos, que do lixo tiravam o   sustento para suas famílias. As primeiras iniciativas  de buscar no lixo alternativa  de renda à  trabalhadores em situação de desemprego, estiveram no rastro do debate das pastorais sociais da Igreja Católica  na  defesa do meio ambiente, diante do modelo de desenvolvimento adotado pela economia mundial.  Acumulou-se em Porto Alegre experiências exitosas ao longo da década de 80, tanto assim, que em 1990 o poder público do município  assume como política pública a coleta seletiva de resíduo  e  sua destinação, aos chamados galpões de reciclagem. 

A Ilha Grande foi como que um laboratório  pioneiro na busca da ampliação e aperfeiçoamento  de formas e alternativas de coletas de carroceiros e suas famílias que faziam o trabalho de separação. É lá que surge as primeiras tentativas de organização destes trabalhadores através dos chamados galpões de reciclagem. O filme "Ilha das Flores" corre o mundo e  Porto Alegre torna-se referencia no trato e debate sobre o tratamento de seus resíduos. As experiências no trabalho de coleta e separação foram sendo acumuladas e aos poucos foram sendo incorporadas como formas ou dinâmicas produtivas junto aos trabalhadores do setor, transformando-se em  tecnologias para aquele momento histórico.

O governo do estado através da Metroplan na gestão Olívio Dutra, incorpora o modelo logístico e produtivo, e vários galpões são construídos com design próprio na região metropolitana. Os municípios de Alvorada, Cachoeirinha, Viamão  e Porto Alegre,  estão entre os municípios que receberam  estes galpões  com as características  do galpão da Restinga, por exemplo.

O município de Dois Irmãos, baseado nas experiências pioneiras, deu outros  passos na direção da evolução de  dinâmicas produtivas  e conseqüentemente modificando o parâmetro de renda dos trabalhadores envolvidos. Foram introduzidos novos práticas/conceitos para tratar com as questões relativas aos resíduos como: convênios de cooperativas de trabalhadores com  o setor publico,  a  mecanização do sistema não somente aumentou  a quantidade de material separado, como também foram testando as possibilidades da agregação  de   valor ao material separado.   A   uniformidade e a objetividade que máquina impõe, rompe com a subjetividade produtiva até então empregada, proporcionando ao trabalhador  a harmonização de  ritmos,  a racionalização  do  tempo e  o aumento da produção por decorrência e no seu rastro, o aumento da renda  do cooperado. Com o aumento da renda a rotatividade entre os trabalhadores cai, e sem rotatividade, cresce a especialização da mão de obra, o espírito de corpo do coletivo; a equipe  fortalecida, destrói-se os mitos e hábitos provincianos e busca-se abertura  que  modernizem e aprimorem as formas de  gestão até então vigentes para o setor. A mecanização do sistema ajudará  no rompimento de práticas do pequeno grupo, quase  sempre alicerçado na concepção da  família tradicional, comandada por uma matriarca  tribal, ou um chefe patriarca corrupto  onde tudo acontece a partir do comando de sua batuta. Não falamos  aqui do espaço propicio que representa hoje as Uts para a lavagem de dinheiro do narcotráfico.

Outras tecnologias foram sendo empregadas com êxito em outras cooperativas na região do Vale dos Sinos e em muitos outros inexpressivos municípios do estado. Em muitos momentos  tentou-se trazer este debate para Porto Alegre e municípios do entorno, mas  se impôs um conceito de que “o sistema desenvolvido no Vale não se adequava  à  Porto Alegre e região,  tendo em vista que o perfil dos trabalhadores eram  diferentes”.  A mão de obra  predominante nos galpões de reciclagem do vale, era masculina oriundas da mecanização da colônia alemã, que ao contrario  dos galpões de Porto Alegre e entorno eram 80% de mulheres chefe de família em situação de miséria. Recorreu-se ao conceito da “motrocidade fina” feminina para justificar que galpões com mulheres catadoras eram mais produtivos. As unidades tornaram-se espaço mais de assistência social do que empresas eficientes e produtivas.

Ancorado numa visão mítica/bíblica do Atos dos Apóstolos  da Igreja Católica e suas lideranças leigas e religiosas,  embaladas pela Teologia da Libertação, Porto Alegre não fez o caminho do vale. A forma de pensar a questão dos resíduos  assumida em Porto Alegre foi através do pequeno grupo, na subjetividade das relações e na atomização de recursos e de infra-estrutura. O poder público deu-se conta desta anomalia, mas não teve a coragem de fazer frente ao sistema ineficiente diante das montanhas de lixo que aumentavam de forma exponencial. Fruto desta visão paroquial e provinciana, permanecemos  ao longo destes  últimos vinte anos refém desta forma conservadora de gerenciamento do sistema de manejo de nossos resíduos. É incompreensível que  uma capital do porte de Porto Alegre, com mais de um milhão de habitantes/consumidores, pioneira nas alternativas de seletividade de seus resíduos e da organização de seus trabalhadores, duas décadas depois  permaneça com os mesmos padrões de coleta e classificação de seus resíduos.

Multiplicou-se Unidades de Triagem(Uts),  em flagrante contramão da concepção do gerenciamento moderno. Descentralizando operações, atomiza-se  o  recurso público, humano e técnico. Os trabalhadores, divididos em pequenos núcleos, repetindo tecnologias ultrapassadas de separação, não atingem a escala produtiva necessária para o beneficiamento, acabando nas mãos de atravessadores montanhas de material duramente triados.  Como os ritmos produtivos não se modernizaram, deu  lugar a um ciclo não virtuoso no conjunto do sistema: de parte do poder público, não vale a pena fazer campanha de ampliação da coleta seletiva, pois as unidades não dão conta da demanda; Sem campanha de conscientização da população, diminui a qualidade o resíduo, aumentando o gasto do município com a prática danosa do enterramento do apelidado rejeito. Através de  movimentos repetitivos rudimentares, um gari desenvolve a famosa LER (lesão por esforço repetitivo) de diversos tipos; no ato de repetir gestos por milhares de vezes,  jogando sacola por sacola num cesto, que por sua vez milhares de outras mãos, rasgarão  a mesma sacola, uma por uma, tornando a produção lenta e repetição exaustiva de movimentos. E aqui não falamos de homens que correm infinidades de quilômetros por dia no serviço da coleta, acarretando o uso sistemático de drogas em vista de vencerem a jornada.

Durante os últimos 10 anos ONGs disputaram recursos públicos ou privados,  convencidos que os problemas dos galpões de reciclagem de Porto Alegre, estavam ancorados na fraca capacidade de gestão de suas lideranças. Afirmamos aqui, pela longa experiência que acumulamos nestes últimos 10 anos, que o limite atual de ganhos  nas unidades  com a lógica produtiva em curso é impossível ultrapassar 150,00 reais/semana. O material que chaga nas unidades é de péssima qualidade; a manualidade do sistema não  impõe  volumes razoáveis de material separa e 30% do ganho do mesmo  material é drenado através da venda à  atravessadores.  Para aumentar a renda, precisamos aumentar em 10 vezes a quantidade de resíduo por unidade, mecanizar o sistema como um todo, e evidentemente ajustar o sistema de gestão das unidades, com monitoramento técnico permanente. O aumento da escala produtiva abrirá  outras possibilidades na relação das UT com a industria, quebrando a lógica do atravessador. Com menor número de  Uts e a mecanização do sistema a escala produtiva aumenta, abrindo a porta para o beneficiamento dos materiais na própria unidade, que além de agregar valor ao material,  equaliza recursos e infra-estrutura, e por conseqüência o aumenta o faturamento a ser partilhado entre os cooperados. Com remuneração digna a rotatividade cai, e sem rotatividade a qualificação da mão de obra se aprimora, fortalecendo o espírito de coletivo. 
Se Porto Alegre e seus gestores, não tiverem a coragem de modernizar  a gestão de seus resíduos, tratando como empresa modernas nossas Unidades, permaneceremos refém  de grupelhos  pseudos anarquistas ou concepções religiosas decadentes.

Porto Alegre precisa urgentemente repensar sua política de recolhimento e destinação de seus resíduos.  É imperioso um planejamento de médio e longo prazo. É impossível manter 18 Uts com as mesmas praticas produtivas da década de 80. Não só o meio ambiente perde com esta dinâmica produtiva obsoleta, mas perde o poder público,  pois os resíduos poderiam converterem-se em vetores importantes no desenvolvimento regional do município. Trabalhadore(a)s miseráveis sem qualificação – travestis, usuários terminais de drogas, doentes mentais -  se entregam a lideranças inescrupulosas que saqueiam seus ganhos diários.

O poder público tem de tomar para si a responsabilidade de centralizar o máximo  o sistema pulverizado atual. Modernizá-lo do ponto de vista tecnológico, constituindo escalas produtivas de porte, em vista do ingresso destes trabalhadores e suas empresas, em cadeias produtivas, articulando produção das Uts e as necessidades de matérias primas que a industria necessita.
Sem medo de contrariar anomalias anarquistas  em franca decadência no mundo moderno, ou dogmas religiosos de caráter demagógico/populista, teremos que repensar a política de gerenciamento de resíduos em nossa capital. Retirando a cortina demagógica populista de setores conhecidos, debrucemo-nos num planejamento lúcido e competente de médio e longo prazo  em vista de incluirmos  este setor no planejamento  do desenvolvimento econômico do município. Três ou quatro regiões da cidade poderiam ser oxigenadas com um potente investimento publico,   implantando no máximo 4 modernas usinas de triagem com o beneficiamento da matéria prima acoplado a elas.  A  Uts  podem pensarem na criação de suas  próprias industrias de manufaturas a partir da matérias prima de suas unidades. Ações articuladas entre secretarias afins deverão ser criadas, aportando os incentivos necessários, para atrair para a região,  industrias  interessadas na produção de artefatos,  cuja matéria prima sejam disponibilizadas pelas UTs regionais. Nas regiões de instalações das Uts ou junto delas poderão ser  instalados  “Complexos Regionais de Educação Ambiental”(CREA)”, dinamizando não somente a economia da regional, mas espaços onde jovens estudantes circulem com seus professores adquirindo saberes necessários em vista de tornarem-se cidadãos comprometidos com as questões ambientais do futuro. Através de ações integradas, integramos comunidade e mentes na perspectiva do fortalecimento de um circulo virtuosa da economia e da cultura da região, fomentando emprego formal,  fortalecendo  a  economia regional e articulando ações culturais incluindo homens e mulheres na cidadania emancipatória de toda a comunidade do entorno.

Pedro Figueiredo. março 2013
 
Pedro Figueiredo – Educador Popular desde 1980 junto aos movimentos sociais de do RS e Goiás. Nos últimos  15 anos,  trabalha  junto a população recicladora de PoA e região metropolitana. De 2006/08 morou  em um galpão de reciclagem com a finalidade de compreender as dinâmicas das relações e as possibilidades econômicas destes coletivos. Trabalhou  no CAMP  durante 8 anos na assessoria de movimentos sociais. Http://historiasdepedras.blogspot.com