Uma reflexão sobre a atual situação dos galpões de reciclagem em Porto
Alegre e sua história, na perspectiva de contribuir no debate do papel do
agente público, nestes tempos de implementação da PNRS(Política Nacional dos
Resíduos Sólidos)
A desconstituição (1)
PEDRO FIGUEIREDO
O lançamento do curta “Ilhas das Flores” do cineasta Jorge Furtado[i]
no fim da década de 80, foi a expressão de um trabalho de ecologistas pioneiros e também de militantes
dos movimentos sociais, que lutavam na
tarefa de despertar a classe média, no
sentido de serem responsáveis pelos resíduos que produziam, e suas atuações tinha com meta
atingir escolas privadas, igrejas e empresários socialmente responsáveis. Esta
tarefa assentou-se em dois princípios: se por um lado pautava as questões
ecológicas emergentes, por outra, colocava-se a questão da inclusão social de centenas
de trabalhadores, que por décadas faziam do lixo sua forma de sobrevivência na
periferia da capital. O pioneirismo na Coleta Seletiva em Porto Alegre, não se
deu por obra e graças de um administrador que ganhava as eleições naquele
longínquo 1989. A Coleta Seletiva no município, foi implantada como Política Pública,
por pressão de uma base social organizada, articulando diversos setores dos
movimentos sociais, que iam desde os movimentos ambientalistas e seus matizes, às pequenas e múltiplas alternativas
autogestionária de trabalho e renda, que brotavam diante do desemprego
estrutural daquele período.
Essa base social organizada é caudatária de uma cultura democrática
e participativa dos movimentos sociais que emergiram da luta pelo fim da
ditadura militar. É nesse contexto que o conjunto dos movimentos sociais
acumularam forças para eleger uma proposta de administração pública
comprometida com seus anseios e esperanças.
E, foi a partir deste capital
social acumulado, na base do tecido social
que a capital gaúcha começou a exportar ao mundo as experiências exitosas de
gestão participativa; o Orçamento Participativo pesquisado e tomado como
referência por inúmeros países e cidades do mundo, na verdade representou, o desaguadouro
de múltiplas experiências de participação cidadã, encubadas aos longos de quase
quatro décadas na capital.
Não podemos deixar de lado nesta história também as múltiplas e exitosas experiências
participativas por meio da cultura cooperativista , implementada por décadas a
fio em várias regiões do interior
gaúcho, principalmente nas regiões de colonização alemã e italiana, sem deixar
de fora “o pucherão” da cultura
guaranítica. A expulsão do campo de
milhares de sem terras e pequenos agricultores, que deu forma a periferia da capital, e com eles e elas, também veio o caldo cultural da participação
democrática por meio do mutirão, da colaboração, enfim do associativismo. As
Associações de catadores a partir da década de 80 nascem justamente dentro
dessa construção de lutas por trabalho, liberdade, democracia e
participação cidadã no campo e nas cidades.
Hoje, essa experiência acumulada por mais de 25 anos nas Associações
e Cooperativas de Catadores de Porto Alegre, está sob grave risco de desconstituição.
A incompetência do atual gestor público,
coloca em risco o sistema da Coleta Seletiva
e principalmente as Associações e
a experiência inédita da autogestão no setor da reciclagem. Com material de
péssima qualidade e em quantidades muito aquém do necessário, os associados ou
cooperados destes inúmeros empreendimentos, buscam novas formas de sobrevivência,
abandonando suas organizações constituídas ao longo de anos, por ter sido tirado deles a matéria prima
básica de seu sustento, fragilizando-as e comprometendo de forma irremediável a
história cultural da auto gestão de Porto Alegre.
Para justificar uma pseudo incompetência das associações e cooperativas,
que ao longo dos anos protagonizaram a fina articulação entre sobrevivência,
democracia e sustentabilidade ambiental, o poder público optou pela autoritária intervenção nas Unidades , plantando
“técnicos” de formação duvidosa, apropriando-se
de saberes acumulados em décadas de experimentos,
colocando sob seu mando e comando. As cooperativas e Associações sem muitas
alternativas, visto que para sua sobrevivência dependem do material que lhes é
fornecido pela prefeitura, foram
forçadas a aceitar a entrada desses
técnicos, lançando as associações e suas lideranças num jogo competitivo
entre si, por meio da divulgação de rankings
produtivos das organizações. Em pouco
mais de um ano legando ao ostracismo parceiros antigos, educadores sociais e livres colaboradores. Deliberadamente ou não, o investimento
público do BNDS – nunca
se investiu tanto no setor – que viria para ajudar os recicladores, tornou-se o
instrumento de desagregação interna das entidades, fragilizando a articulação
entre elas e suas lideranças.
Em tempos de implantação da Política Nacional de Resíduos
Sólidos, - onde
muitos municípios do estado, como Canoas, Viamão, São Leopoldo, Gravatai e
outros, que optaram pela Contratação de Prestação de Serviço das associações e
cooperativas para coleta e serviços de limpeza das cidades, Porto Alegre e seus gestores por
incompetência ou má fé, caminham no sentido oposto, assumindo a rota da desconstrução da histórica cultura
autogestionária em nosso estado,
perdendo assim a oportunidade do
rompimento com a lógica viciada e
perversa dos grandes contratos,
alicerçados na corrupção e na malversação dos recursos públicos.
* * *
Pedro Figueiredo –
Educador popular. Desde o ano de 2000, integrado na constituição e assessoria
de associações e cooperativas de catadores de Porto Alegre e do Rio Grande do
Sul.