09/09/2013

 
MEMÒRIAS DO LIXO
Um relato sobre a reciclagem em Porto Alegre
 
LUCAS RIBEIRO KIST

 Neste texto procuro narrar minha experiência enquanto bolsista daquele grupo, entre setembro de 2010 e julho de 2011. Para tanto, buscarei brevemente: introduzir a problemática do lixo na Região Metropolitana de Porto Alegre; explicar a importância do grupo de pesquisa Galpões de Triagem; comentar criticamente o período de estudo; e, finalmente, discutir a situação atual da reciclagem em Porto Alegre.
   Adicionalmente, gostaria de agradecer as seguintes pessoas: Fabiana Arenhardt, por haver me indicado para esta pesquisa; Antônio Pedro Figueiredo, pelo auxílio nas visitas de campo; Fernando Freitas Fuão, pelos diversos ensinamentos; aos recicladores do lixo, pelo trabalho e pela esperança.

O grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação
 O grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação foi registrado em 2006 junto ao CNPq. Desde então um intenso trabalho de campo foi realizado na Região Metropolitana de Porto Alegre. Primeiramente, este trabalho se deu enquanto aproximação – mais do que compreensão – de uma realidade social verdadeiramente problemática, em relação à qual idéias preconcebidas seriam de pouca utilidade.
   Evidentemente, o tema da reciclagem deveria despertar interesse generalizado, ao menos se nos considerássemos integrantes de uma sociedade solidária. Tal não ocorrendo, deveremos destacar alguns grupos sociais nesta discussão: 1. Os trabalhadores, associados e demais pessoas próximas. 2. Os educadores populares, ativistas e estudantes. 3. O poder público. 4. Os arquitetos e engenheiros. 5. As empresas que negociam a matéria-prima.
   À parte de qualquer sofisma, esta pesquisa tem o mérito de voltar a maior parte de sua atenção aos trabalhadores, associados e demais pessoas próximas. Isto se deve a um motivo bastante simples: este grupo social, historicamente desfavorecido, realiza um trabalho indispensável à sociedade brasileira contemporânea: dar destinação àquilo que chegou ao fim do ciclo de consumo.
   Discursivamente parecem inexistir novidades neste tipo de argumentação, ao passo que os problemas da reciclagem persistem. Por isso, procuraremos nos distanciar da argumentação convencional, a fim de recordar algumas das nossas experiências de campo – na medida em que possam auxiliar os leitores em suas próprias [e alternativas] conclusões.
A experiência de campo
   Em nível acadêmico, certamente existem inúmeras metodologias de trabalho, de interesses e méritos diversos, e que são objeto de intermináveis discussões. Ser prontamente levado aos galpões de reciclagem certamente representa uma modalidade especial de investigação.
   À primeira vista poderia parecer inadequado recordar impressões pessoais das nossas visitações aos ambientes de reciclagem. Mas mesmo que este modo de proceder não fosse aceito, deveríamos nele persistir, por coragem e maturidade. Porque na dimensão pessoal da experiência de campo encontram-se importantes e mesmo constrangedoras reflexões.
   Não pretendo ser arrogante ou fútil falando criticamente; também não pretendo ser hipócrita. Pertenço a uma realidade social diferente, e posso cometer sérios erros de julgamento. O que me faz prosseguir é o impulso de verbalizar situações inexprimíveis de outro modo.
   Quando estive pela primeira vez em um galpão de reciclagem, que prefiro não identificar, minha impressão foi péssima. Tive vontade de voltar ao carro, e nunca mais retornar àquele lugar. Não havendo tal opção, resolvi evitar o contato físico com aquela realidade. O lixo e a sujeira, espalhados por todos os cantos, davam àquela sobra da cidade um aspecto repulsivo.     
   E então eu deveria permanecer distante, sem sequer cumprimentar as pessoas que, ao parar de manusear o lixo, falavam comigo. Definitivamente não é agradável estar entre aquilo que milhares de pessoas descartam; e provavelmente ninguém está em um ambiente de reciclagem por opção. Os maiores – e mais perturbadores – problemas humanos [insalubridade, insegurança, miséria] são onipresentes.
   No entanto, uma multidão anônima sobrevive do lixo na Região Metropolitana de Porto Alegre, muitas vezes em locais abandonados ou de difícil acesso. Isto de forma alguma constitui sutileza acadêmica, mas um autêntico problema de mundo, complicado, desafiador – e muitas vezes desanimador. Assim, seria mais fácil abandonar esta discussão, ou fingir que ela não existe.
   E aqui está o nosso problema, passo a passo: afetar alguma preocupação; esconder a repulsa por aqueles ambientes; compreender que não há solução fácil; deixar o destino se encarregar daquelas pessoas; e, em meio a outras preocupações cotidianas, evitar quaisquer pensamentos incômodos.
 
Produção teórica
   Quando ingressei na pesquisa, em setembro de 2010, uma das minhas primeiras tarefas consistiu em uma primeira organização da documentação até então produzida, que incluía uma infinidade de fotos, textos, entrevistas, ilustrações, levantamentos, acumulados durante anos.
   Devido à necessidade de organização, estabelecemos cinco grandes categorias de arquivação: uma para aquilo que seria publicado [em cartilha e manual], outra sistematizando o funcionamento da pesquisa, uma terceira agrupando os galpões de triagem estudados, uma quarta para outros arquivos digitais que fossem elaborados, e, finalmente, uma para os arquivos mais antigos, desorganizados e desatualizados.
   E foi através desta tarefa que comecei a compreender com maior sistematicidade os diversos aspectos da reciclagem [humanos, técnicos, econômicos, sociais]. Em verdade, não há métodos ou ambientes de trabalho padronizados nos diversos galpões, nem vasta literatura produzida a respeito do assunto. Deste modo, é mais apropriado dizer que a prática da reciclagem é feita de tendências, similaridades, e adaptações a cada local.
   Para citar algumas expressões recorrentes à nossa pesquisa, gaiolas são estruturas arquitetônicas nas quais o lixo que chega aos galpões é descarregado; bags são grandes sacolas em que o lixo é localmente transportado; fardos são porções de lixo prensado e amarrado, pronto para a venda. O contato progressivo com estas expressões, por vezes estranhas, permite vislumbrar uma realidade de trabalho improvisada.
   Então surgem perguntas como: afinal, triagem e reciclagem são sinônimos? Na verdade, a triagem é uma etapa do processo mais amplo de reciclagem da matéria-prima, a fim de que esta retorne à indústria [ou seja devolvida ao ambiente] e sejam economizados recursos naturais. Isto de forma alguma torna a triagem desimportante.
   No entanto, avançando neste raciocínio, haveremos de perceber que esta situação é problemática. Atualmente, muito menos que servir ao ambiente, os galpões de triagem da região metropolitana de Porto Alegre servem para varrer para debaixo do tapete a sujeira dos centros urbanos e para oferecer matéria-prima barata às indústrias, através da exploração dos trabalhadores – via de regra sob péssimas condições de trabalho. Desta perspectiva, a sociedade brasileira contemporânea pode continuar consumindo tanto quanto financeiramente possível, ao passo que os recursos naturais, ao invés de serem utilizados com maior eficiência, são meramente utilizados em maior escala.  
   Então os galpões de triagem visitados por nós podem ser ditos soluções tecnicamente apressadas e negligentes, que operam abaixo da eficiência possível e, salvo raras exceções, abaixo das condições humanamente aceitáveis. Neste contexto, a produção de qualquer literatura acadêmica específica constitui um avanço provisório, mas fundamental.
 
A funcionalidade de um galpão de triagem
  Cumprida a etapa de organização do material, pudemos avaliar a condição da pesquisa. Os dados coletados em campo, acrescidos à documentação até então elaborada por outros bolsistas, já permitia que pensássemos em finalizar um manual arquitetônico dos galpões de triagem. Na medida do possível, fizemos alterações e acréscimos aos textos existentes, e procuramos reescrever os primeiros capítulos.
   Simplificadamente, pode-se dizer que um galpão de triagem é geralmente uma construção arquitetônica de baixa qualidade, adaptada à separação do lixo. Além disso, essa construção costuma estar localizada em áreas urbanas decadentes e/ou afastadas das grandes concentrações urbanas.
   Nos galpões de triagem há pessoas encarregadas de diferenciar manualmente o lixo misturado, trazido até ali em caminhões ou em carrinhos pelos próprios trabalhadores. Cada carga de lixo recebida, de potencial econômico variável, é despejada num recinto chamado gaiola. A seguir, o lixo acumulado na gaiola é retirado pelos trabalhadores, classificado e reagrupado por tipo. Depois desta etapa, cada categoria de lixo separado é encaminhada para prensagem, pesagem e venda. Finalmente, a renda produzida é [bem ou mal] distribuída entre os trabalhadores.
   Evidentemente, a linha de produção pode apresentar variações por motivos tais: localização do edifício, posição do edifício no terreno, orientação solar, equipamento de trabalho disponível, concepção arquitetônica, etc. Além disso, variam as pessoas, grupos e associações diretamente envolvidas no processo de separação do lixo – e a maneira pela qual se organizam. E assim surgem problemas de outra ordem.
 
 A dimensão econômica e a dimensão humana da reciclagem
 Pela dimensão econômica da reciclagem entendemos não apenas o aspecto financeiro, mas todo o sistema de serviços e atividades voltados direta ou indiretamente à reciclagem do lixo. Neste sentido, a reciclagem é um serviço elementar e indispensável tanto à manutenção do território em condições sanitárias adequadas quanto ao reaproveitamento de recursos naturais limitados.
   No entanto, esta importância não deve se sobrepor à dimensão humana da reciclagem – isto é, ao sentido que a reciclagem adquire sob uma investigação humanista. Por um lado, – e esta é provavelmente a análise mais simplória – a reciclagem se encarrega de classificar e destinar [para lixões ou para reaproveitamento industrial] aquilo que foi produzido e consumido em massa. Por outro, apenas algumas pessoas desfavorecidas são encarregadas deste trabalho de classificação e destinação.
   Com o perdão da obviedade, estas pessoas também são seres humanos, e têm todo direito de viver com o mínimo de dignidade. Infelizmente, muitas vezes não é isto o que se verifica nos ambientes de reciclagem da região metropolitana de Porto Alegre. Numa discussão supérflua, é possível que alguém dissesse: “mas alguém sempre terá de fazer o trabalho da reciclagem”, ao que poderíamos acrescentar cinicamente “desde que não seja eu”.
   Ora, é claro que alguém sempre terá de fazer o trabalho da reciclagem, caso contrário seria uma calamidade não apenas para uma ou outra classe social, mas para todas as classes sociais, indistintamente. Estas e muitas outras objeções poderiam ainda ser feitas acerca de qualquer crítica à atual condição da reciclagem. No entanto, o aspecto fundamental a ser discutido aqui é a generalizada ausência de solidariedade para com aqueles que se encarregam do lixo. Descartar a problemática do lixo como se ela própria fosse lixo, valendo-se da desculpa de que alguém sempre terá de se encarregar do problema [desde que não seja eu], definitivamente não constitui uma postura ética.
   Conforme verificamos em campo, a condição humana, embora poucas vezes seja digna, é variável entre os galpões visitados. Então é de se supor que, no mínimo, os galpões em que a qualidade de vida é pior devam ser equiparados aos galpões em que a qualidade de vida é melhor. Isto não é nenhum idealismo; na prática, os associados carecem de coisas objetivas: equipamentos, recursos, administração, treinamento – às vezes inclusive de alimentação, segurança, higiene. Soluções existem e devem ser buscadas.
   Sendo crítico em relação a mim mesmo, eu poderia perder a oportunidade de relatar uma das minhas experiências acadêmicas mais problemáticas – e por isso mesmo mais importantes. O que me vem à memória é o final de tarde em que Pedro Figueiredo e eu retornávamos de Canoas a Porto Alegre. Nós dois retornávamos ao ambiente urbano constituído, a um estado de certezas e comodidades que usualmente passam despercebidos aos habitantes da metrópole.
 [In]conclusões pessoais
  Num extremo há os poucos galpões bem equipados e bem administrados, formando ambientes que incentivam ao trabalho e que oferecem alguns confortos. Por exemplo, refeições programadas e locais para descanso. No outro extremo, há os galpões improvisados em sobras da cidade, onde se trabalha de qualquer jeito e sem verdadeiras garantias quanto a higiene, segurança e remuneração.
   Evidentemente, se espera das prefeituras e das próprias comunidades que organizem a produção de modo mais adequado, higiênico e eficiente. Mas, conforme apontado, pelo professor Fernando Fuão, melhorias simples, como a ligação de um ponto de água ou de iluminação ao local de trabalho, muitas vezes se mostram impossíveis de realizar. Embora sejam diversos os motivos para tal situação, em termos gerais podemos falar em abandono [e repulsa] por parte da sociedade.
   Dada a preponderância atual do discurso da sustentabilidade e do reaproveitamento de recursos, deveria existir uma comoção sistemática da sociedade para com o destino dos processos industriais de larga escala. Mais do que isso, deveria haver uma preocupação social mais séria com o destino das pessoas desfavorecidas. Infelizmente, na prática é muito mais fácil continuar jogando o lixo no lixo, e deixando o trabalho sujo para outras pessoas.
   Ao fazer estas críticas, não espero parecer o dono da verdade – nem considero a crítica ao processo da reciclagem atividade para uma única pessoa. Aquilo que foi produzido em larga escala deve também ser discutido em larga escala, e com inteligência. A destinação daquilo que milhares de pessoas consomem é de responsabilidade de toda a sociedade, não de apenas alguns setores.
   Certamente existem meios, tecnologias e recursos capazes de melhorar significativamente os processos da reciclagem de lixo. Infelizmente, parece faltar verdadeiro interesse social pelos problemas sociais. Mas a coragem e a maturidade pedem alguma forma de retorno às preocupações sociais elementares, não mais em nível panfletário, mas profissional e solidário.
   Nada disto significa que estas questões tenham repentinamente perdido importância, ou deixado de existir. Apesar de todos os relativismos e sofismas, a realidade social continua aqui, ali e em todo lugar, para quem quiser vê-la, enquanto participante e enquanto parte de si.
 
O que a pesquisa deixa em aberto
Para não ficar simplesmente repetindo o velho clichê segundo o qual é preciso trabalhar por uma maior conscientização social, procurarei apontar alguns aspectos objetivamente importantes em relação à temática do lixo na região metropolitana de Porto Alegre.
   Primeiramente, a população de baixa renda deve ser considerada com maior seriedade e inteligência pela administração pública. Evidentemente, esta preocupação [em termos de urbanização, saneamento, oportunidades, etc.] deve ser sistemática, não esporádica. Sem pretender ser ofensivo, aqueles que trabalham na reciclagem do lixo fazem isto por não terem alternativa. Provavelmente não é este o momento para argumentar que este estado de coisas é produto de um abandono e de uma ineficiência administrativa acumulados em sucessivos períodos históricos brasileiros e porto-alegrenses.
 O que deve ser dito neste momento é que as soluções meramente técnicas de gestão do lixo urbano, apesar de representarem considerável melhora à condição da cidade constituída, não solucionam nem amparam de qualquer maneira as comunidades que fazem do lixo urbano um meio de sobrevivência.
Além disso, parece que quando alguns setores industriais finalmente perceberem o óbvio – que o lixo urbano é constituído de recursos majoritariamente reaproveitáveis acumulados da escala geográfica –, procurarão industrializar a atividade da reciclagem, o que por si só é louvável, mas apenas em benefício próprio.
 Então devemos refletir acerca das seguintes questões: a sistematização da coleta do lixo urbano efetivamente contribui para a ecologia ou é apenas uma maneira de tornar o consumismo da cidade constituída um tanto menos incômodo? Quem criará verdadeiros mecanismos de amparo aos recicladores – incluindo isto educação, profissionalização, moradia, saúde, segurança etc.?
É impressionante que a administração pública não consiga responder minimamente à sua atribuição fundamental: devolver aos cidadãos ao menos parte daquilo que lhes é retirado em impostos. Sem poder ir tão longe, este trabalho deve insistir que não há sequer aporte técnico de arquitetos e engenheiros para a construção de instalações de reciclagem.
Até o momento, estes e outros aspectos foram seriamente investigados, com maior profundidade e minúcia do que aqui descritos, no grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação. Infelizmente, a maior de todas as lacunas é o desinteresse generalizado pela temática do lixo.
Toda uma população precisa ser amparada através das medidas possíveis; toda uma população precisa ser esclarecida quando ao seu papel no contexto social; toda uma população precisa ser reinserida na sociedade. Mesmo que oficinas, visitas, entrevistas, palestras pareçam pouco, definitivamente constituem postura mais nobre que o descaso.