MEMÒRIAS DO LIXO
Um relato sobre a reciclagem em Porto Alegre
LUCAS RIBEIRO KIST
Neste texto procuro narrar minha experiência enquanto bolsista daquele grupo, entre setembro de 2010 e julho de 2011. Para tanto, buscarei brevemente: introduzir a problemática do lixo na Região Metropolitana de Porto Alegre; explicar a importância do grupo de pesquisa Galpões de Triagem; comentar criticamente o período de estudo; e, finalmente, discutir a situação atual da reciclagem em Porto Alegre.
Adicionalmente, gostaria de agradecer as
seguintes pessoas: Fabiana Arenhardt, por haver me indicado para esta pesquisa;
Antônio Pedro Figueiredo, pelo auxílio nas visitas de campo; Fernando Freitas
Fuão, pelos diversos ensinamentos; aos recicladores do lixo, pelo trabalho e
pela esperança.
O grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação
O grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação foi registrado
em 2006 junto ao CNPq. Desde então um intenso trabalho de campo foi realizado
na Região Metropolitana de Porto Alegre. Primeiramente, este trabalho se deu
enquanto aproximação – mais do que compreensão
– de uma realidade social verdadeiramente problemática, em relação à qual
idéias preconcebidas seriam de pouca utilidade.
O grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação
Evidentemente, o tema da reciclagem deveria
despertar interesse generalizado, ao menos se nos considerássemos integrantes
de uma sociedade solidária. Tal não ocorrendo, deveremos destacar alguns grupos
sociais nesta discussão: 1. Os trabalhadores, associados e demais pessoas
próximas. 2. Os educadores populares, ativistas e estudantes. 3. O poder
público. 4. Os arquitetos e engenheiros. 5. As empresas que negociam a
matéria-prima.
À parte de qualquer sofisma, esta pesquisa tem
o mérito de voltar a maior parte de sua atenção aos trabalhadores, associados e
demais pessoas próximas. Isto se deve a um motivo bastante simples: este grupo
social, historicamente desfavorecido, realiza um trabalho indispensável à sociedade brasileira contemporânea: dar
destinação àquilo que chegou ao fim do ciclo de consumo.
Discursivamente parecem inexistir novidades
neste tipo de argumentação, ao passo que os problemas da reciclagem persistem.
Por isso, procuraremos nos distanciar da argumentação convencional, a fim de
recordar algumas das nossas
experiências de campo – na medida em que possam auxiliar os leitores em suas
próprias [e alternativas] conclusões.
A experiência de campo
Em nível acadêmico,
certamente existem inúmeras metodologias de trabalho, de interesses e méritos
diversos, e que são objeto de intermináveis discussões. Ser prontamente levado
aos galpões de reciclagem certamente representa uma modalidade especial de
investigação.
À primeira vista poderia
parecer inadequado recordar impressões
pessoais das nossas visitações
aos ambientes de reciclagem. Mas mesmo que este modo de proceder não fosse aceito,
deveríamos nele persistir, por coragem e maturidade. Porque na dimensão pessoal da experiência de campo
encontram-se importantes e mesmo constrangedoras
reflexões.
Não pretendo ser arrogante ou fútil falando
criticamente; também não pretendo ser hipócrita. Pertenço a uma realidade
social diferente, e posso cometer sérios erros de julgamento. O que me faz
prosseguir é o impulso de verbalizar situações inexprimíveis de outro modo.
Quando estive pela primeira vez em um galpão
de reciclagem, que prefiro não identificar, minha impressão foi péssima. Tive
vontade de voltar ao carro, e nunca mais retornar àquele lugar. Não havendo tal
opção, resolvi evitar o contato físico com aquela realidade. O lixo e a
sujeira, espalhados por todos os cantos, davam àquela sobra da cidade um aspecto repulsivo.
E então eu deveria permanecer distante, sem
sequer cumprimentar as pessoas que, ao parar de manusear o lixo, falavam
comigo. Definitivamente não é agradável estar entre aquilo que milhares de
pessoas descartam; e provavelmente ninguém está em um ambiente de reciclagem
por opção. Os maiores – e mais perturbadores – problemas humanos
[insalubridade, insegurança, miséria] são onipresentes.
No entanto, uma multidão anônima sobrevive
do lixo na Região Metropolitana de Porto Alegre, muitas vezes em locais abandonados
ou de difícil acesso. Isto de forma alguma constitui sutileza acadêmica, mas um
autêntico problema de mundo, complicado, desafiador – e muitas vezes
desanimador. Assim, seria mais fácil abandonar esta discussão, ou fingir que
ela não existe.
E aqui
está o nosso problema, passo a passo:
afetar alguma preocupação; esconder a repulsa por aqueles ambientes;
compreender que não há solução fácil; deixar o destino se encarregar daquelas
pessoas; e, em meio a outras preocupações cotidianas, evitar quaisquer pensamentos
incômodos.
Quando ingressei na pesquisa, em setembro de
2010, uma das minhas primeiras tarefas consistiu em uma primeira organização da
documentação até então produzida, que incluía uma infinidade de fotos, textos,
entrevistas, ilustrações, levantamentos, acumulados durante anos.
Devido à necessidade de organização,
estabelecemos cinco grandes categorias de arquivação: uma para aquilo que seria
publicado [em cartilha e manual], outra sistematizando o funcionamento da
pesquisa, uma terceira agrupando os galpões de triagem estudados, uma quarta
para outros arquivos digitais que fossem elaborados, e, finalmente, uma para os
arquivos mais antigos, desorganizados e desatualizados.
E foi através desta tarefa que comecei a
compreender com maior sistematicidade os diversos aspectos da reciclagem
[humanos, técnicos, econômicos, sociais]. Em verdade, não há métodos ou
ambientes de trabalho padronizados nos diversos galpões, nem vasta literatura
produzida a respeito do assunto. Deste modo, é mais apropriado dizer que a
prática da reciclagem é feita de tendências, similaridades, e adaptações a cada
local.
Para citar algumas expressões recorrentes à
nossa pesquisa, gaiolas são estruturas arquitetônicas nas quais o lixo que
chega aos galpões é descarregado; bags são grandes sacolas em que o lixo é
localmente transportado; fardos são porções de lixo prensado e amarrado, pronto
para a venda. O contato progressivo com estas expressões, por vezes estranhas, permite
vislumbrar uma realidade de trabalho improvisada.
Então surgem perguntas como: afinal, triagem
e reciclagem são sinônimos? Na verdade, a triagem é uma etapa do processo mais
amplo de reciclagem da matéria-prima, a fim de que esta retorne à indústria [ou
seja devolvida ao ambiente] e sejam economizados recursos naturais. Isto de
forma alguma torna a triagem desimportante.
No entanto, avançando neste raciocínio,
haveremos de perceber que esta situação é problemática. Atualmente, muito menos
que servir ao ambiente, os galpões de triagem da região metropolitana de Porto
Alegre servem para varrer para debaixo do
tapete a sujeira dos centros urbanos e para oferecer matéria-prima barata
às indústrias, através da exploração dos trabalhadores – via de regra sob
péssimas condições de trabalho. Desta perspectiva, a sociedade brasileira contemporânea pode continuar consumindo tanto
quanto financeiramente possível, ao passo que os recursos naturais, ao invés de
serem utilizados com maior eficiência, são meramente utilizados em maior
escala.
Então os galpões de triagem visitados por
nós podem ser ditos soluções tecnicamente apressadas e negligentes, que operam
abaixo da eficiência possível e, salvo raras exceções, abaixo das condições
humanamente aceitáveis. Neste contexto, a produção de qualquer literatura
acadêmica específica constitui um avanço provisório, mas fundamental.
A funcionalidade de um galpão de
triagem
Simplificadamente, pode-se dizer que um
galpão de triagem é geralmente uma construção arquitetônica de baixa qualidade,
adaptada à separação do lixo. Além disso, essa construção costuma estar
localizada em áreas urbanas decadentes e/ou afastadas das grandes concentrações
urbanas.
Nos galpões de triagem há pessoas
encarregadas de diferenciar manualmente o lixo misturado, trazido até ali em
caminhões ou em carrinhos pelos próprios trabalhadores. Cada carga de lixo
recebida, de potencial econômico variável, é despejada num recinto chamado
gaiola. A seguir, o lixo acumulado na gaiola é retirado pelos trabalhadores, classificado
e reagrupado por tipo. Depois desta etapa, cada categoria de lixo separado é
encaminhada para prensagem, pesagem e venda. Finalmente, a renda produzida é
[bem ou mal] distribuída entre os trabalhadores.
Evidentemente, a linha de produção pode
apresentar variações por motivos tais: localização do edifício, posição do
edifício no terreno, orientação solar, equipamento de trabalho disponível,
concepção arquitetônica, etc. Além disso, variam as pessoas, grupos e
associações diretamente envolvidas no processo de separação do lixo – e a
maneira pela qual se organizam. E assim surgem problemas de outra ordem.
No entanto, esta importância não deve se
sobrepor à dimensão humana da reciclagem – isto é, ao sentido que a reciclagem
adquire sob uma investigação humanista. Por um lado, – e esta é provavelmente a
análise mais simplória – a reciclagem se encarrega de classificar e destinar
[para lixões ou para reaproveitamento industrial] aquilo que foi produzido e
consumido em massa. Por outro, apenas algumas pessoas desfavorecidas são encarregadas
deste trabalho de classificação e destinação.
Com o perdão da obviedade, estas pessoas
também são seres humanos, e têm todo direito de viver com o mínimo de
dignidade. Infelizmente, muitas vezes não é isto o que se verifica nos ambientes
de reciclagem da região metropolitana de Porto Alegre. Numa discussão
supérflua, é possível que alguém dissesse: “mas alguém sempre terá de fazer o
trabalho da reciclagem”, ao que poderíamos acrescentar cinicamente “desde que
não seja eu”.
Ora, é claro que alguém sempre terá de fazer
o trabalho da reciclagem, caso contrário seria uma calamidade não apenas para
uma ou outra classe social, mas para todas as classes sociais, indistintamente.
Estas e muitas outras objeções poderiam ainda ser feitas acerca de qualquer crítica
à atual condição da reciclagem. No entanto, o aspecto fundamental a ser
discutido aqui é a generalizada ausência de solidariedade para com aqueles que
se encarregam do lixo. Descartar a problemática do lixo como se ela própria
fosse lixo, valendo-se da desculpa de que alguém sempre terá de se encarregar
do problema [desde que não seja eu], definitivamente não constitui uma postura ética.
Conforme
verificamos em campo, a condição humana, embora poucas vezes seja digna, é
variável entre os galpões visitados. Então é de se supor que, no mínimo, os
galpões em que a qualidade de vida é pior devam ser equiparados aos galpões em
que a qualidade de vida é melhor. Isto não é nenhum idealismo; na prática, os
associados carecem de coisas objetivas: equipamentos, recursos, administração,
treinamento – às vezes inclusive de alimentação, segurança, higiene. Soluções
existem e devem ser buscadas.
Sendo crítico em relação a mim mesmo, eu
poderia perder a oportunidade de relatar uma das minhas experiências acadêmicas
mais problemáticas – e por isso mesmo mais importantes. O que me vem à memória
é o final de tarde em que Pedro Figueiredo e eu retornávamos de Canoas a Porto
Alegre. Nós dois retornávamos ao ambiente urbano constituído, a um estado de
certezas e comodidades que usualmente passam despercebidos aos habitantes da
metrópole.
[In]conclusões pessoais
Evidentemente, se espera das prefeituras e
das próprias comunidades que organizem a produção de modo mais adequado,
higiênico e eficiente. Mas, conforme apontado, pelo professor Fernando Fuão,
melhorias simples, como a ligação de um ponto de água ou de iluminação ao local
de trabalho, muitas vezes se mostram impossíveis de realizar. Embora sejam
diversos os motivos para tal situação, em termos gerais podemos falar em
abandono [e repulsa] por parte da sociedade.
Dada a preponderância atual do discurso da
sustentabilidade e do reaproveitamento de recursos, deveria existir uma comoção
sistemática da sociedade para com o destino dos processos industriais de larga
escala. Mais do que isso, deveria haver uma preocupação social mais séria com o
destino das pessoas desfavorecidas. Infelizmente, na prática é muito mais fácil
continuar jogando o lixo no lixo, e deixando o trabalho sujo para outras
pessoas.
Ao fazer estas críticas, não espero parecer
o dono da verdade – nem considero a crítica ao processo da reciclagem atividade
para uma única pessoa. Aquilo que foi produzido em larga escala deve também ser
discutido em larga escala, e com inteligência. A destinação daquilo que milhares
de pessoas consomem é de responsabilidade de toda a sociedade, não de apenas
alguns setores.
Certamente existem meios, tecnologias e
recursos capazes de melhorar significativamente os processos da reciclagem de
lixo. Infelizmente, parece faltar verdadeiro interesse social pelos problemas
sociais. Mas a coragem e a maturidade pedem alguma forma de retorno às
preocupações sociais elementares, não mais em nível panfletário, mas
profissional e solidário.
Nada disto significa que estas questões tenham
repentinamente perdido importância, ou deixado de existir. Apesar de todos os
relativismos e sofismas, a realidade social continua aqui, ali e em todo lugar,
para quem quiser vê-la, enquanto participante e enquanto parte de si.
O que a pesquisa deixa em aberto
Para não ficar simplesmente repetindo o
velho clichê segundo o qual é preciso trabalhar por uma maior conscientização
social, procurarei apontar alguns aspectos objetivamente importantes em relação
à temática do lixo na região metropolitana de Porto Alegre.
Primeiramente, a população de baixa renda
deve ser considerada com maior seriedade e inteligência pela administração
pública. Evidentemente, esta preocupação [em termos de urbanização, saneamento,
oportunidades, etc.] deve ser sistemática, não esporádica. Sem pretender ser
ofensivo, aqueles que trabalham na reciclagem do lixo fazem isto por não terem
alternativa. Provavelmente não é este o momento para argumentar que este estado
de coisas é produto de um abandono e de uma ineficiência administrativa acumulados
em sucessivos períodos históricos brasileiros e porto-alegrenses.
O que deve ser dito neste momento é que as
soluções meramente técnicas de gestão do lixo urbano, apesar de representarem considerável
melhora à condição da cidade constituída, não solucionam nem amparam de
qualquer maneira as comunidades que fazem do lixo urbano um meio de
sobrevivência.Além disso, parece que quando alguns setores industriais finalmente perceberem o óbvio – que o lixo urbano é constituído de recursos majoritariamente reaproveitáveis acumulados da escala geográfica –, procurarão industrializar a atividade da reciclagem, o que por si só é louvável, mas apenas em benefício próprio.
Então devemos refletir acerca das seguintes questões: a sistematização da coleta do lixo urbano efetivamente contribui para a ecologia ou é apenas uma maneira de tornar o consumismo da cidade constituída um tanto menos incômodo? Quem criará verdadeiros mecanismos de amparo aos recicladores – incluindo isto educação, profissionalização, moradia, saúde, segurança etc.?
É impressionante que a administração pública não consiga responder minimamente à sua atribuição fundamental: devolver aos cidadãos ao menos parte daquilo que lhes é retirado em impostos. Sem poder ir tão longe, este trabalho deve insistir que não há sequer aporte técnico de arquitetos e engenheiros para a construção de instalações de reciclagem.
Até o momento, estes e outros aspectos foram seriamente investigados, com maior profundidade e minúcia do que aqui descritos, no grupo de pesquisa Galpões de Triagem: arquitetura, design e educação. Infelizmente, a maior de todas as lacunas é o desinteresse generalizado pela temática do lixo.
Toda uma população precisa ser amparada através das medidas possíveis; toda uma população precisa ser esclarecida quando ao seu papel no contexto social; toda uma população precisa ser reinserida na sociedade. Mesmo que oficinas, visitas, entrevistas, palestras pareçam pouco, definitivamente constituem postura mais nobre que o descaso.