07/09/2013

A contraditória-condição da cidade hoje.
Luzes rasgando o túnel.

Marcelo Gotuzzo


Quem suporta os muros-homens, indivíduos alicerçados, divididos e cercados?

O mundo cada vez mais “globalizado”, de relações cada vez mais distantes e reticentes: o mundo de botões reais e virtuais onde tudo vira produto de consumo, para todos os sentidos físicos. O mundo imediato dos envólucros, das embalagens coloridas. As embalagens quase vazias. O mundo dos abandonos. O i-mundo ou ai-mundo.

Descarta-se o que ainda funciona, dentro da lógica consumista i-nsana a que estamos presos. Socialmente e materialmente, também, as cidades são telas de abandonos múltiplos. Abandona-se os pobres, os velhos, os “diferentes” como abandona-se uma edificação antiga. O homem está entregue ao abandono, como ocorre com os seus envólucros de cimento. São esquecidos, pisados e expulsos-destruídos do convívio “fraterno” das cidades.

E assim a paisagem urbana reflete este estado mal resolvido, negando-se a si própria, sobrepondo-se com máscaras que escondem a sua natureza primeira de compor-se e recompor-se nas suas diversas formas de cidade, na sua diversidade.

Para Derridá, a Hospitalidade é a que funda a cidade. A cidade ponto de interseção para trocas e aprendizados. Ela, a cidade, gostou tanto de sua vocação inicial, que permaneceu em um estado imanente e se sucedeu como tal.

A cidade foi feita para o sentir-se mais humano no outro. A cidade se estabelece no oferecer-se hu-mano (mão) ao outro.

Este sentido de acolhimento, infelizmente, está esquecido na nossa cidade de ret^angulos formalizada, pela forma voraz que a cidade se coloca face à necessidade do “progresso”.

Porém, existe uma outra cidade dentro desta cidade formalizada. Esta outra cidade mantém a lógica da cidade hospitaleira de Derridá. Esta lógica está entranhada nas comunidades de periferia, nas “favelas”, e dentro mesmo dos núcleos urbanos, em locais de resistência comunitária. Estas comunidades marginalizadas, estando desatendidas pelo amparo público, tem que se virar.

Também reconhecida como cidade informal, tem sido alvo de especulações profícuas sobre as suas relevâncias, sobre o que a cidade formal pode aprender com esta "outra cidade".

Aprendi em uma usina de reciclagem na Guarda do Embaú - SC

Numa comunidade de economia voltada principalmente ao turismo sazonal, e portanto, frágil às camadas menos favorecidas, os colaboradores da usina acharam uma maneira de, por si próprios, obterem retorno financeiro.

Através da perseverança da professora Élia, há 20 anos a usina de reciclagem de resíduos da Guarda do Embaú desenvolve suas atividades. Hoje com diversos colaboradores que atuam através de uma cooperativa, a iniciativa tomou porte de um engajamento coletivo: desenvolve-se um trabalho exemplar que afeta toda a comunidade. O impacto ambiental está reduzido e um lucro social se instalou. Todos participam, decidem, organizam, em um modelo de efetiva participação coletiva.

Organizaram uma carrocinha para recolher resíduos secos da cidade, entre estes eletrônicos, e tudo, tudo mesmo o que puder ser reaproveitado.

Hoje também contam com um caminhão, para dar conta da demanda do recolhimento de lixo reciclável de outras áreas vizinhas. O óleo vegetal (usado para frituras) também é reciclado: ali na usina o transformam em biodiesel, muito usado em veículos agrícolas e aviões. Este combustível é 30% menos poluente que o diesel comum. O óleo vegetal também é utilizado para produzir sabão.

Uma linda loja, que comercializa produtos artesanais, encanta a usina. Nesta loja-brechó são encaminhados os “diamantes brutos” colhidos no lixo, que são transformados em peças únicas para comercialização: Maria, transforma os materiais coletados com arte: uma calça manchada vira um lindo short, bordado com lantejoulas, ou com uma pintura delicada. Colares, pulseiras, enfeites para casa, tapeçaria, cortinas, luminárias, quadros, espelhos, instrumentos musicais… qualquer cacareco vira arte nas mãos desta moradora nativa da comunidade. Um refinamento que confere uma qualidade de dar inveja a muitas butiques: tudo a um preço popular, acessível a todos.

Esta criatividade, este tom forte da participação e da produção inventivas, transborda os limites físicos da usina, irradiando os entornos: ali perto há diversos projetos de inclusão social: espaços públicos para prática de esporte, pistas de skate, um novo alojamento com projetos voltados à dependentes químicos, que trabalham na usina… os equipamentos urbanos, que são caprichosamente colocados nos entornos, vêm também da produçãio criativa dos materiais encontrados na usina, advindos dos “rejeitos” da cidade.

Jeferson, um dos trabalhadores da usina de reciclagem: “Aqui tambem trabalhamos um processo de reciclar algo muito, muito importante: reciclamos pessoas aqui também, reciclamos pessoas, aqui trabalhamos com dependentes químicos, eu sou um deles. Viemos do lixo, trabalhamos com lixo, mas aprendemos aqui, no dia-a-dia que não fazemos parte do lixo, não somos lixo, e que o lixo não é lixo, pode virar ouro. Temos aprendido isso trabalhando aqui, cuidando da cidade, dando novos usos para o que a cidade descarta. Estamos aprendendo que nosso trabalho é importante para o futuro do planeta. Isso ajuda bastante na nossa auto-estima. Reusar, reciclar, deveria forma básica de atitude social hoje, não há outra possibilidade, precisamos usar o lixo de maneira sábia”.

Jeferson, assim como outros envolvidos na Usina de Reciclagem da Guarda do Embaú tem uma visão social madura, comprometida. Reciclar é entender, respeitar, amar o planeta. Amando o planeta aprendemos a amar a nós mesmos, e, amando a nós mesmos, podemos ser úteis para toda a humanidade.

Após conhecer a Usina, visitei a casa de Maria, organizadora do Brechó. A inventividade que vi na sua loja, aplicada ao seu Lar. Maria transborda sabedoria em arquitetura. Criações com reuso, inversões, adaptações com muita arte. Até a funcionalidade é subvertida: a cozinha tem um balcão-apoio que fica do lado de fora, com acesso pela janela um equipamento "extremamente útil" nas suas palavras.

Enquanto a cidade quadrada formal moderna se demora cada vez mais na sua visão cartesiana-newtoniana, já ultrapassada há mais de cem anos pela física moderna, a Maria do brechó mostra uma profunda capacidade de pensamento sistêmico e sabedoria de vida, de como ser-se Humano, e de como fazer Cidade. A Doutora em Hospitalidade Maria, deveria ser uma professora de Projeto Arquitetônico de qualquer universidade do mundo.

Acho que Derridá faria a sua casa com a arquiteta Maria...

Marcelo Gotuzzo