Ca(p)tadores de novas forças
Gladys Neves/2006
A leitura do texto “A representação de Matias” de Fernando Fuão, lido por ele mesmo, para a turma de 30 alunos, em silêncio, durante quase uma hora, deu início ao semestre. E ali estavam as palavras chaves que nos acompanhariam no Projeto do Centro Social dos Catadores de Papel: representação e corporação.
Representação é um termo bastante conhecido desde as experiências pré-escolares, cujas linguagens visual e gráfica oferecem um modo para explorar e expressar entendimentos do mundo. Porém para nós arquitetos, é a nossa linguagem, é como expressamos e materializamos uma idéia, um pensamento enfim um projeto.
A representação, conforme Fuão, mantém uma relação de essência com o duplo, o duplo corpo, entendido como corporação e corpo social, nessa multiplicidade agregativa que conforma a heterogênea massa da vida.
Contudo, como acontece com a criança, a escola e a cultura separaram a cabeça do corpo. “A criança tem cem linguagens (e depois cem, cem, cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. Pois dizem-lhe que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho são coisas que não estão juntas!” ( Malaguzzi, 1995).
O mesmo acontece com os excluídos, onde a sociedade separa o ser humano do cidadão, justamente “por não possuírem representações institucionalizadas de espécie alguma, passam a contar com sua única representação: o corpo, como suporte e escrita” ( Fuão).
Mesmo dentro da lógica da fragmentação gera-se uma aglutinação, semelhante à lógica da collage – “o que é a collage, senão encostar solidões?”. Segundo Fuão, todo corpo separado, amputado tende a se agregar a um outro corpo para gerar um novo significado, uma outra representação, guardando sempre relações de representatividade com o corpo de origem, mas se abrindo enquanto significações para novas representações.
Esse movimento dos corpos que muitas vezes, no caso da representação arquitetônica, tende a “perturbar a pureza da ordem arquitetônica”, constitui a “essência espacial da arquitetura “(Aguiar).
Na maioria das vezes prevalece na representação gráfica dos projetos arquitetônicos a negação dos corpos, das rotas, dos movimentos, salvo a “utilização dos carimbos desprezando e ignorando a singularidade de cada corpo, de cada personagem, ignorando principalmente as identidades de todos aqueles que não tem e nunca tiveram representação” (Fuão).
O animismo, para Aguiar, torna a representação mais real, através das plantas animadas, ou seja com a presença dos corpos e seu movimento. Para isso, houve uma preocupação gráfica na utilização de carimbos de calungas com identidades de usuários e visitantes, ora mais passivos, ora mais ativos, conforme a atividade.
Esta prática pouco usual nas pranchetas da faculdade – surpreendeu a todos, resgatando o preenchimento do espaço e não o vazio tão encontrado nas revistas de arquitetura.
A palestra da psicóloga Vilene Moehlecke# sobre o corpo que dança enriqueceu o repertório do corpo que trabalha, que leva nas costas um carrinho cheio de papéis, latas e ferro velho. Buscar esta diversidade de estilos e linguagens, a fim de provocar “um certo mover”, pode tornar o corpo num “captador de novas forças”.
O exercício de desenho da figura humana conduzido por Beatriz Dorfmann, junto com os alunos na sala de aula, reforçou a presença do corpo, despertando contornos e limites necessários para o equilíbrio entre o espaço “tratado” e seus protagonistas.
O tema proposto constituiu-se na re-qualificação arquitetônica do prédio existente da ONG da CEF:moradia e cidadania, através da proposta para um Centro Social destinado aos catadores de resíduos sólidos de Porto Alegre, baseando-se na análise e intervenção dos projetos apresentados pelos alunos do semestre 2005/1, da faculdade de arquitetura da UFRGS
Além do tema ser pouco freqüente na prática de Atelier, pelo seu aspecto social, foi reforçado pela intervenção num prédio existente, através dos projetos elaborados por alunos e não por grandes arquitetos, o que não desmereceu, por isso, o produto final.
A idéia da construção do cronograma de atividades em contínuo ajuste foi um critério proposital no decorrer do semestre. Causando algumas vezes uma certa “turbulência” por parte dos alunos, mas isso era de se esperar, pois trata-se de um projeto cujo Programa de Necessidades não está ainda estabelecido e consagrado nos manuais de arquitetura.
O objetivo principal do semestre com este projeto de caráter social foi muito mais que manipular um projeto existente dos alunos de semestre anterior, num prédio também existente, foi de “refinar habilidades de pesquisa quanto à exploração do design de materiais recicláveis” compatíveis com a realidade dos catadores, tais como garrafas pet, embalagens tetra pak, latinhas, tampas, sacos plásticos, etc.
É o que vemos nos relatos de Gabriela# sobre os inventos de rua, captando ”com afeto” os óculos, o aparelho de som, “como receitas de como transformar estas sucatas em peças de design quase industrial”
Gabriela percorreu o centro do Rio de Janeiro de 1998 a 2001, como ela mesmo manifesta:” procurei colher na rua, imagens de uma evidência quase invisível – os inventos de rua!”
Como disse Rubem Alves, a gente fica poeta, quando olha uma coisa e vê outra... é isso que tem o nome de metáfora.#
Os inventos de rua também aconteceram na sala do atelier PVII, através de luminárias de garrafas, de biombos de garrafas Pet, de iglus de Tetrapak, de fachadas de jornal, de cortinas de fios de plásticos, de pisos de CDs, de tapetes de tampinhas, enfim uma verdadeira loja de peças de design reciclável.
As maquetes foram o momento máximo do semestre, parece que ali realmente o Centro Social para os Catadores virou quase uma realidade, comprovada através da alegria do Seu Antonio ao imaginar-se perambulando pelo Centro.
E esta imagem perseguiu o semestre nas palavras do Douglas: imaginar-se perambulando no espaço; imaginar-se usando o espaço; imaginar-se se apropriando do espaço; enfim, imaginar-se em movimento. Neste momento, surgiram as plantas animadas, uma prática pouco freqüente, pouco atípica por incrível que pareça nos projetos de arquitetura. É como desenhássemos os limites físicos e psíquicos dos movimentos das pessoas dentro do projeto.
E daí em diante, a cenografia acolhe o espaço, revestindo de materiais leves ou de cortinas que se abrem e desvendam um mundo de sonhos e magias como um verdadeiro antídoto ao cotidiano dos catadores.
A luz e a cor também são elementos imprescindíveis para este ambiente.
A intenção do projeto foi oferecer ao mesmo tempo uma sensação de bem-estar físico com uma “felicidade psicológica” para os excluídos.
As experiências que acontecerão nas oficinas certamente oferecerão aos papeleiros a capacidade de descobrir e desenvolver novas habilidades e quem sabe novos talentos.
Sabemos que o lixo brasileiro é considerado um dos mais ricos do mundo e a catação informal sustenta sua reciclagem. Portanto, para uma exploração mais digna, uma das soluções é trabalhar a criatividade com solidariedade, a com-paixão com ação, transformando esses catadores de papel em “captadores de novas forças”. Uma simples letra que se encaixa, transforma o sentido e a atuação destes trabalhadores.
Enfim, o tema deste projeto VII – um Centro Social para Catadores de Papel, deve ser cada vez mais divulgado pela significativa importância social e pela prática projetual capaz de desenvolver (a ponto de devolver) a auto-estima dos papeleiros, tão bem expressada como um apelo de Jacques Saldanha para este grupo de excluídos.
A Arquitetura do Espetáculo terminou, comentou Figueiredo (Profetas da Ecologia), iniciamos um outro ciclo onde a arquitetura terá um novo papel: social e ecológico.
Quem será o usuário desta nova arquitetura? Alguns perambulam nas ruas, catam papéis, lixo, sob viadutos e avenidas com suas carroças e carrinhos entre crianças e cachorros...
E, nós arquitetos, qual o comprometimento com este fato nas nossas cidades, o que fazer com as montanhas de material reciclado proveniente das indústrias e das nossas casas, quais os projetos que faremos daqui pra frente?
Estamos diante de uma realidade onde os professores de Arquitetura e a própria Universidade ainda não se engajaram. Existem apenas soluções e atitudes pontuais, como esta que está sendo desenvolvida no semestre PVII da Arquitetura pelos professores Fernando Fuão, Douglas Aguiar e Julio Cruz que podem transformar não só os catadores, mas também os nossos alunos em “captadores de novas forças”
24/03/2009
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