OS CATADORES DA VILA
CHOCOLATÃO
A IDÉIA DE COLLAGE NA VILA CHOCOLATÃO
"Os catadores são como anjos, eles possuem o atributo da universalidade, da collage, agrupam fragmentos e reagrupam pessoas, formando comunidades e organizando o (i) mundo"
Pelo princípio da analogia, o
homem nomeia a natureza e em cada nome, uma metáfora. Por esse princípio a
palavra Chocolatão, diretamente associada a uma barra de chocolate, foi usada
para nomear o edifício da Receita Federal na cidade de Porto Alegre. A relação
metafórica feita pela população não refere-se ao sabor, mas a forma retangular
e a cor marrom do edifício - cuja relação com o contribuinte costuma ser amarga
e indigesta. Dos devoradores de impostos aos devoradores de lixo, o nome se
estendeu por proximidade para a Vila que nos anos 80 se formou atrás deste edifício.
As favelas podem ser
consideradas frestas na ordem das cidades. Caracterizam-se pela precariedade física
e humana resultante da exclusão de uma parcela da população que não conseguiu
ser absorvida pela cidade formal. Essas pessoas são aquelas que já nasceram sem
nenhuma esperança de trabalho ou a perderam junto com seu emprego, seus
projetos, seus pontos de orientação, e a confiança em suas vidas. Nesse vagar
pelas margens dos espaços cerrados, descobriram fendas e frestas.
A Collage é um processo de
linguagem que usa imagens já existentes para explorar uma nova sintaxe. Nela o
que conta é o que está além das circunstâncias aparentes e que sugere outra
realidade. Em comum, favela e collage são indefinições, falta de determinação,
falta de certeza, falta de contorno, vazio.
A vila Chocolatão, para quem
não conheceu, localizava-se junto ao Centro Administrativo Federal de Porto
Alegre; um terreno que pertence a União, delimitado pelos edifícios da Receita
Federal, INCRA, Justiça Federal, Tribunal Regional Federal, IBGE, Serpro, e próximo
a Câmara Municipal de Vereadores. Em resumo, a Vila estava na fenda, cercada
por todas as instâncias de poder que unidas pretendiam e conseguiram
transferi-la para longe. Ela era uma ferida nova, indesejada, que corroia a
carne territorial do centro administrativo, e não se sabia como controlá-la.
Transformou-se em uma ferida incurável a espera do momento de sua desaparição,
e teve uma morte figurada quando foi trans-ferida para outra área da cidade.
Ferida é a verdade como
evidencia. Para os que habitavam na Vila do CHocolatão esses processos
decorrentes do abandono e da injustiça aparecem unidos em diversas maneiras
como na fissura da pedra (crack) e sua loucura, nos processos de demolição do
ser e agora do lugar. Quando a fissura passa a dominar o corpo, ela torna-se
rachadura e o corpo fica entregue a morte, a ferida.
A inserção da Vila neste contexto propiciava o encontro de situações e condições contraditórias que colocavam sobre a mesma superfície territorial formalidade e informalidade, ordem e desordem, justiça e injustiça. Além desses fatores a Vila possuía uma característica específica que a organizava em todos os sentidos, a presença do lixo como matéria, através do trabalho de catação de seus moradores. O lixo, entendido como resto, refugo, material já visto e usado, é tanto a matéria-prima da collage que trabalha com recortes de revistas, quanto da construção dos barracos. É matéria viva em metamorfose. É também o espelho da sociedade consumidora que invertendo a imagem reflete todo o sistema de obsolescência das mercadorias, das imagens e do próprio homem.
Collage. Giovana Santini
A inserção da Vila neste contexto propiciava o encontro de situações e condições contraditórias que colocavam sobre a mesma superfície territorial formalidade e informalidade, ordem e desordem, justiça e injustiça. Além desses fatores a Vila possuía uma característica específica que a organizava em todos os sentidos, a presença do lixo como matéria, através do trabalho de catação de seus moradores. O lixo, entendido como resto, refugo, material já visto e usado, é tanto a matéria-prima da collage que trabalha com recortes de revistas, quanto da construção dos barracos. É matéria viva em metamorfose. É também o espelho da sociedade consumidora que invertendo a imagem reflete todo o sistema de obsolescência das mercadorias, das imagens e do próprio homem.
Parte da Vila era composta
por fragmentos de diferentes arquiteturas ou objetos que encontram-se no
carrinho do catador que as unia formando as superfícies de suas moradas. Os
materiais encontrados nos lixos, nas caçambas de detritos, por suas características
de resíduos, foram libertos de suas funções originais - porta, janela, tapume -
e apresentam-se livres para tornarem-se parede, cobertura, telhado, mobiliário,
brinquedo. Assim eles construíam seus abrigos ante a inclemência do tempo e do
abandono das autoridades durante mais de 20 anos. Os restos ou os abandonados
encontravam-se e colavam-se, unindo-se um ao outro, compondo as superfícies dos
barracos e das vidas. Collage é encostar, colar solidões!
O dinamismo da estrutura da
antiga vila se contrapõe a atual Nova Chocolatão. Antes ela rompia a unidade e
homogeneidade massificadora das caixas tradicionais da arquitetura das casas
atuais, e permitia uma composição aberta as multiplicidades de aparências e
personalização das casas.
A urbanização das favelas ou
as tristes políticas de transferências não devem começar pela arquitetura, mas
pelo desenvolvimento e revitalização da identidade do grupo ou comunidade que a
constitui. É preciso respeitar o processo de criação e composição das moradias
que revelam como a comunidade se vê e como ela deseja ser vista. Começa num
consenso e não na simples construção de casa, ruas, praças, como uma imposição.
Se este processo for entendido, pelas autoridades políticas e pelos técnicos,
então, as construções podem ser projetadas para refletir a verdadeira
identidade e as aspirações da comunidade.
A denominação dos seres e das
coisas como convenção para designá-los é uma forma de dominação que cria
referencias baseadas em juízos anteriores. É preciso olhar de novo o mundo e
romper com a visão e os pensamentos estagnados do hábito e da rotina. A collage
permite esse novo olhar através do ato de re-ver as imagens e os conceitos em
si mesmos, perfurá-los e recriá-los.
Revendo a Vila do Chocolatão
comecei a ver além e ver mais; ultrapassei as fronteiras do seu cercamento para
ver uma beleza particular, a humanidade, a beleza divina de cada um,
independente de sua casca, o que estava além da representação. E tudo que vi,
que encontrei, que recortei, colei em mim. Quantas camadas, quantas superfícies
nos constituem? Talvez sejam tantas quantas camadas faziam um barraco na
Chocolatão.
Collage. Giovana Santini
Collage. Giovana Santini
Giovana Santini é arquiteta e mestre pela UFRGS com a dissertação Vila
Chocolatão - encontros da collage na arquitetura. Professora da Univates e
da Faculdade da Serra Gaúcha.
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