14/04/2010

O (i) mundo.
fernando fuão

De uma maneira geral, as diferentes sociedades sempre tiveram uma relação de afastamento com os resíduos por elas produzidos. O lixo é freqüentemente associado com quem trabalha com ele, aos moradores de rua e aos catadores.
O lixo está associado à ordem e à desordem. Portanto, dizemos que isso está também no campo da arquitetura, da cidade, da ordenação das cidades, da ordenação do espaço. Balandier, em seu livro A desordem, elogio ao movimento, explicou que a desordem e o caos não estão somente situados, num lugar, eles estão também exemplificados. A essa topologia imaginária associa-se a um conjunto de figuras, personagens que manifestam sua ação dentro do próprio espaço policiado. Nessa perspectiva, não só o lixo, mas também as pessoas que trabalham com ele surgem como figuras de desordem. Figuras que são banalizadas e repletas de ambivalência por aquilo que delas é dito e do que elas designam, são objeto de desconfiança e medo em razão de sua diferença de sua situação e margem, são geralmente os primeiros suspeitos e as vítimas de acusação. Figuras que arrastam outras figuras como a violência, a doença, a fome. O próprio fenômeno da catação e da reciclagem do lixo acaba por explicar a desordem da ordem moderna. O (i)mundo. O lixo é muito mais que um subproduto da sociedade atual, ele retrata e amplifica a própria estrutura da sociedade produtivista em que vivemos. O lixo sempre existiu, mas em abundância como vemos hoje, é um fenômeno dos últimos anos. Ele é o retrato mais fiel da sociedade de consumo e da superficialidade de uma sociedade que prioriza as embalagens em detrimento do conteúdo, para que os produtos possam durar mais e viajar longas distâncias.
O conhecido artista Armam nos anos 50-60, e outros neo-realistas já haviam percebido o potencial do lixo, do rejeito, da matéria enquanto materialidade plástica e mesmo simbólica da ação do ser humano, como um retrato da cultura contemporânea individual. Armam fazia o que ele chamava de “retratos” de seus amigos: entregava para eles lixeiras circulares e transparentes, onde colocavam todos os rejeitos, todo o lixo produzido dia a dia. Esses materiais, ao fim e ao cabo, deveriam retratar e/ou representar parte do indivíduo tal como uma fotografia. Com isso, Armam demonstrava que o homem na atualidade, é um grande produtor de lixo, e não mais precisa ser representado por sua fisionomia, mas sim pelos próprios objetos que produz, consome e descarta.
Pelo avesso, quem consome o lixo explica não só sua condição de exclusão, sua desterritorialização, o avesso do ser humano, mas revela o processo da cadeia exploratória humana, seu verso. Ao olharmos mais atentamente o lixo, como nos explica Sueli Cabral, encontramos relações sociais e simbólicas que, se por um lado o instituem como dejeto, por outro podem reconhecê-lo como elemento de emancipação. Seu avesso é uma figura semiológica de desordem inscrita num sistema de signos e vigiada por controles mais simbólicos do que reais. Afastar o impuro, afastar a convivência com o insuportável a partir de uma ordem utilitarista e hierarquizada, apresenta fortes sinais de desintegração.
A atividade de catação é bastante antiga, em todo caso ela aponta ao longo da história o papel de exclusão e do não direito ao uso da cidade, quiçá a própria condição civilizatória, por parte de quem limpa o mundo. Entretanto, o fenômeno de catação das milhares de pessoas que sem perspectiva preparam seus corpos para puxar carrinhos ou trabalhar nas mesas de triagem dos galpões de reciclagem é nova, e até então nunca vista.
Essas pessoas invadiram os centros e as ruas das cidades com seus carrinhos, viviam segregados e escondidos na periferia, na periferia da periferia cinza. De repente esses “desconhecidos” aparecem de forma nova. É o novo, o evento que chega em carrinhos para mostrar, anunciar o não visto. Esse ‘outro’ antes oculto arrasta mitologicamente o temor, o medo e a desordem, mas ao mesmo tempo, é ele que nos livra de uma culpabilidade do desperdício, e da irresponsabilidade com os rejeitos que jogamos fora.
Esses outros, esses catadores, recicladores representam a fonte do inesperado, do imprevisível, eles são o próprio acontecimento (event) que atenta contra o curso natural das coisas, contra a própria ordem das cidades.
Na verdade eles são os anunciadores de futuro incerto, apresentam-se pelas ruas carregando em seus carrinhos a intolerância do (i)mundo. É o futuro escondido dos homens que dele não se sentem mais donos, que se apresenta como um potencial perturbador, como observou Balandier.
“Por meio de sua lentidão, eles se fazem notar. Levam as ruas e os carros a novos ritmos, com o intuito de questionar a lógica da aceleração.” (CABRAL, Sueli Maria. Urdiduras e Tramas do Avesso: os trabalhadores do lixo.)
Ao se afastar o lixo e ao colocá-lo para fora das relações de uma sociedade asséptica e hierarquizada, ele foi necessariamente aproximando-se dos excluídos, dos não cidadãos, daqueles que viviam às margens da cidades, fora dos muros, nas vilas, na periferia da periferia, nos limites das cidades, no espaço cinza entre uma cidade e outra. O lixo, enfim, assume para os arquitetos um papel questionador dos binômios de centralidade-periferia, dentro-fora, ordem-desordem.
imagem: Lata de lixo de Jim Dine. Arman 1961

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