21/04/2010


Inumano demasiado inumano II
Bruno Euphrasio de Mello


QUARTA FEIRA DIA 4 DE OUTUBRO DE 2006
Antes de terminar queria registrar um fato. Enquanto eu, Camila e Ezequiel conversamos no pátio entre os galpões antigo e novo, ao lado da linha desativada do TrensUrb, antes de irmos visitar o túnel, presenciei um ato que talvez seja corriqueiro mas que me deixou extremamente impressionado. Estávamos ao lado da pilha de vidros que vai sendo acumulado antes da venda quando vi Rodrigo, filho de Dona Vera, homem que tem entre vinte e cinco e trinta anos, aproximando-se. Trazia daqueles enormes latões cilíndricos de ferro repleto de vidros coletados e separados nas mesas apoiado sobre um carrinho. O dia estava bem quente, ele parecia cansado, tinha o semblante enrijecido, suava um bocado. Camisa naturalmente muito suja, calça caindo, calçava chinelos, um pé com meia e outro sem. Cumprimentei-o quando ele
aproximou-se de nós, coisa de uns cinco metros. Ele parece não ter ouvido, não respondeu. Parecia inteiramente concentrado na tarefa que realizava, não havia em sua mente atenção para nada mais além de sua ação de despejar aquele conteúdo na montanha de vidros despedaçados. Obstinado, arremessou impetuosamente o latão pra fora do carrinho já na borda do monte de vidro quebrado. Com um empurrão virou o tonel lançando-o de lado sobre os cacos. Puxando-o pelo fundo veio despejando o conteúdo contribuindo com o monte, até que virou o tonel de cabeça pra baixo. Sacudiu-o impacientemente pra um lado e pro outro tentando livrar todo o vidro. Já estava então com os pés pisando as bordas da pilha de cacos e com os sacolejos os vidros caiam sobre seus pés desprotegidos e ele os afundava ainda mais naquela base movediça.
O movimento parecia ordinário, não causava dor ou incomodo. Era como se sua pele fosse uma casca grossa e resistente. A boca do continente afundava junto com seus pés, misturando-se com o vidro. Como estava difícil puxar pra cima o latão e liberar o vidro na baia, Rodrigo, num movimento forte e rápido, atolou a mão no meio do monte de vidro buscando a boca do tonel para, apoiando-se nela, deixar cair todo o vidro levantando o tonel. Ao vê-lo movimentar-se em direção à boca do tonel quase dei um pulo. Esperei que sua mão se rasgasse em frangalhos
e tiras ensangüentadas. Mas suas mãos, assim como seus pés, têm couro bruto. E ele lançou o tonel vazio de volta ao carrinho e voltou ao trabalho.

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