Para introduzir em filosofia a noção de inconsciente conceitual
MARCIA TIBURI
Assim como Walter Benjamin em seus comentários sobre a fotografia e o cinema chamou inconsciente ótico ao que só aparece revelado pelas máquinas que, num lance de substituição de nossos olhos, fazem ver o que não podemos ver a olho nu, podemos chamar de inconsciente conceitual todo o pensamento que aparece à revelia do que não podemos pensar, cegos que estamos pelos esquemas prévios dados pela moral vigilante do pensamento, aliança perversa entre senso comum e academia, e pela indústria cultural. É neste ponto que a figura de Estamira, seu dizer que avança para além dos discursos, se torna essencial a um pensamento crítico e consistente.
Quem é Estamira? A senhora Estamira não teremos jamais a chance de conhecer, dela só podemos ter um retrato. É este retrato que aparece no documentário homônimo de Marcos Prado. Nele, pelo enquadramento que traça a diferença entre cinema e televisão, e faz do documentário “cinema”, é que se descobre um retrato de Estamira e por meio dela, um retrato natural e cultural de nosso tempo junto a uma inversão de sentido que oportunamente nos revela a verdade dolorosa do fracasso do projeto de “humanidade”, palavra que por poucos séculos encheu a boca dos iludidos e dos poderosos. É a própria noção de civilização que se inverte, não para cair em desuso, mas para ser confrontada com seu real significado.
A paisagem cultural está ali explícita coroando a verdade com que nenhum romantismo jamais sonharia. O homem romântico do século XIX apreciava a paisagem em busca de uma reconciliação com a natureza interna e externa. Estamira busca a mesma reconciliação entre a interioridade e a exterioridade, indo localizar-se no coração do resto. Inverten lucidamente o negativo para dar a ver a verdade da cultura. Freud e Adorno quando diziam que a cultura era lixo ainda não imaginavam como isto encontraria demonstrações empíricas e conceituais tão exatas. Estamira oferece uma plena amostra do inconsciente ótico que vai além da camada já previamente traçada pelo próprio filme e que nos remete, por meio de sua fala articulada e desarticulada, ao que devemos chamar inconsciente conceitual: a verdade como o que aparece fora do discurso filosófico organizado e racionalista. Que a irracionalidade mostre-se plena de sentido, e, portanto, tão racional quanto a racionalidade irracional, é o que assusta em Estamira. É a reconciliação com a natureza humana e o retrato escarrado da realidade que rejeita toda simbolização.
O que vemos em Estamira é o que ela mesma nos mostra. Conhecedora de sua própria “perturbação”, ou seja, dona de uma meta-teoria sobre sua própria diferença, ela sabe que seu nome é uma metáfora e que por meio dela reconheceremos o eixo universal que une a todos. Esta mira é ela, a que “mira”, sendo “esta”, a “encarnada”, “formato par”, “incomum”. “Esta mira” é a realização de um destino metafórico que se faz literal. Esta intelecção inicial faz dela uma alegoria do olhar em nossos tempos. Tempo de voyerismo, de espetáculo, de narcisismo. O aterro de lixo, campo de visão em cujo meio ela vai se situar, forja uma chave de compreensão do mundo. E nos inclui.
A rigor, em respeito a ela e à sua própria auto-compreensão, tratá-la por louca só pode ocorrer de modo amplo, jamais suportando uma taxonomia que a reduza aos poderes psiquiátricos que ontem tentaram abafar Antonin Artaud. Não importam seus diagnósticos psiquiátricos diante de sua relevância para a busca da verdade que é a filosofia. Pode parecer heresia compará-la a Artaud, mas bem além de qualquer artifício retórico, é com ele mesmo que se deve fazer analogia, para pensar que se o louco é aquele que não tem obra, sendo que Artaud tinha a sua, Estamira não é dele diferente. Porém, em vez de criar obra, Estamira situa-se no coração cavernoso da inteira obra humana para dizer-se “eu estou em todo lugar”. “Esta- mira”, segundo a mulher que a encarna e a transforma em “método” é a borda do mundo. Esta borda é o lugar além do qual apenas o “além dos além”, o “transbordo” jamais tocado, jamais visto, está. Um mundo que, no lodo profundo eviscerado, ainda admite mistério. Ela, no olho do lixo como uma pupila totalmente acordada, como um obturador pronto ao blow-up revela-se não como uma imagem apenas, mas como um espelho no qual cada um pode “mirar” a si mesmo.
Hoje que alguns deliram tentando fazer do lixo o luxo sem pensar na dialética que faz do luxo o lixo, é preciso prestar atenção a Estamira. Ela é a anti-musa do anti-mundo, do mundo que por nossa “obra” é dejeto onde o humano, construindo uma dupla banda, é ser de cultura ao mesmo tempo que herdeiro e produtor de restos. Estamira como fala para além do discurso, constitui uma filosofia: uma metafísica - e negativa -, ou seja, uma explicação do ser inserido na lógica de existência; uma ética, ou seja, uma postura em relação ao outro que desvenda o mal (o “esperto ao contrário”, o “Trocadilo”) envolvendo ainda uma ecologia que se preocupa com o que é “lixo” e o que é “descuido”; uma estética de cunho realista e simbólico num só tempo como se o véu do imaginário que a tudo tapa, fosse retirado da cena para deixar ver a verdade. Neste ponto sua estética é também já metafísica. Ali onde o corpo regulado pelo “controle remoto natural e artificial” se mimetiza ao seu habitat natural, entre restos plásticos, animais, vegetais e até cadáveres humanos, entre abutres e cães estão humanos que restam vivos entre restos.
Pensamento de cunho sistematizante, pleno de verdade irretocável e irretorquível, é nele que irrompe o nojo na história com voz e vez. Graças ao cinema que - nova filosofia - mais que olhar e voz, nos mostra o “inconsciente conceitual”. A esta “ciência insana” de Estamira que deixa ver o assassinato da natureza pela cultura - e da cultura pela cultura que vem gerar outra nova cultura, a dos enjeitados, dos rechaçados, dos banidos, como se o absoluto tivesse encontrado seu lugar após séculos de busca - que devemos hoje prestar atenção.
Estamira está no centro do mundo. Análogo à ferida que dá início à arte, à toda obra, está o lago de nojo (o líquido espúrio da fermentação dos dejetos no literal supra sumo da decomposição) no centro do aterro de Gramacho onde ela reflete e explica o mundo. Ela é a porta-voz deste extremo abissal onde o resto do resto alcança uma forma simbólica: o ápice do rejeito. Não é possível falar de hermenêutica em Estamira, ela não tem uma interpretação do mundo, mas uma explicação coerente e definitiva que não esconde o abjeto do qual historicamente quisemos fugir pela razão e pela moral. Para a filosofia que vive de perguntas, Estamira é a única chance de uma resposta epistemológica e moral: é preciso conhecer e respeitar nossos restos, nossa morte em vida, nossa desgraça, nosso horror. Ele não está fora de nós. Ele nos pertence ainda que não aceitemos vê-la. Ela nos vê.
Publicado na revista Cult. 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário