21/09/2008

Os cachorros de Dona Zezé


Pedro Figueiredo




Com a porta entre aberta eu era esperado no 3ºandar. Entre a porta e seu batente aparece uma pálida senhora, jogando ao corredor e ao visitante uma baforada de tabaco fedorento. Diante de insurdecedores latidos atrás da porta entreaberta pelo ferrolho, parecia que chegava em um canil de luxo escondido naquele apartamento. O fedor de tabaco podre, aos poucos foi sendo substituído pela mistura desagradável de cheiros: cosméticos femininos e caninos, urinas ardidas que pareciam que entravam no cérebro sem muita dificuldade. Atônito permaneci, sem palavras para retribuir a atenção que a singela senhora me dispensava. Da fresta da porta, duas cabeças de pequenos cachorros esganiçavam desesperadamente. Entre “los perros pequeños” e o rosto da esquálida mulher, o focinho horroroso de um desconhecido rosnava ameaçadoramente. Checada a minha procedência com a porta aferrolhada, minha anfitriã some, e com ela toda turma barulhenta. O barulho continua, porém contido. Tirando o ferrolho e carinhosamente me convidando para entrar, a gentil senhora pede desculpas pelos transtornos da sala desarrumada, comenta amenidades, como a idade dos cachorros; sobre a vizinha desumana e solitária do andar de baixo, que reclama dos latidos durante o dia, pois “meus filhotes não latem depois do por do sol, adestro-os desde bem pequenos”. Entre tantos assuntos que desorganizadamente debulhavam da boca da pobre mulher, um eu não consigo deixar de pensar até agora, o qual me instigou fazer este registro: na época gastava em torno de C$ 1.300,00 reais por mês com sua “família”. Neste total estava incluído o veterinário, a moça que lhe ajudava a passear com a turma, a alimentação e vestimentas conforme a estação do ano. Gentilmente ofereceu-me café, que com o corpo gelado, aceitei. Ao levar a xícara à boca, vi pêlos minúsculos de cachorro por toda sua borda. Fechei os olhos e o paladar, bebendo de um só gole.
Não tinha visto tudo. Ou melhor, vivenciado. A gentil senhora entre torrentes de palavras – parecia ter estocado a mesma quantidade de jornais e de assuntos – abriu a porta de um dos quartos, e para minha surpresa, algo horroroso estava diante de mim: o quarto todo era tomado de uma camada de 40 cm de jornais imundos e de um fedor de urina inacreditável. Entre tantos assuntos falou-me que tinha chamado o Profetas para levar o jornal por que tinha por costume esvaziar a sala de 2 em 2 meses. Perguntei por que motivo deixava tanto tempo, respondeu-me que tinha medo de abrir seu apartamento com frequência a um papeleiro que a dois anos fazia a coleta e segundo ela tinha deixado de fazer. Sem saber porque não aparecia, convocou-nos.
Assim começa a dura empreitada, de descer do terceiro andar com blocos de jornal apodrecido de urina, superlotando o velho e guerreiro fusca. Na volta, para o segundo carregamento, o cheiro continuava forte, mas me surpreendi que o silêncio era total. Fui informado que comiam e para minha surpresa, comiam no quarto da gentil senhora. Desta vez ofereceu-me bolo de cenoura, com cobertura de chocolate que gentilmente agradeci, imaginando que naquela lâmina de chocolate estavam escondido milhões de finíssimos pêlos. Falou-me que a doação periódica de jornal - apodrecido de excremento - era uma forma de ajudar a quem estava precisando. E insistiu diversas vezes que o mundo seria bem melhor se todos fizessem a sua parte, e as autoridades da saúde fossem mais responsáveis e cuidassem melhor do planejamento familiar.
Gentilmente pediu-me que voltasse todos os meses e na saída presenteou-me com um saco de roupas usadas para distribuir aos trabalhadores do galpão. Alguns dias depois descobri que muitas das roupas “que muito pouco usei” tinham sido juntamente com os jornais, cama para seus pimpolhos.
Saí desesperado em busca de vento puro e sol, pois fui contaminado por aquele ambiente desolador. Vários dias depois, ao lembrar do acontecimento, o cheiro voltava com uma intensidade inacreditável. A pobre mulher aposentada à 15 anos encontrava em seus companheirinhos a força para continuar vivendo, sua solitária vida. Os filhos o abandonaram a muitos anos. Segundo ela todos estudaram muito, estavam fora do Brasil. Ganhavam muito bem. De tanto que estudaram esqueceram-se da mãe. Em sua torrente de palavras, me contou coisas incríveis: como o paladar diferente de cada um dos cachorros, como eles retribuíam seus momentos de tristeza ou alegria. Alguns pareciam-se muito com ela, por exemplo em reações coléricas diante da frustração, do não desejado, do desconhecido... Não canso de me perguntar nas motivações que levaram dona Zezé a fazer aquela opção na vida. Porque alguns optaram em adotar cachorros ao invés de crianças? Porque alguns sorridentemente vivem a vida e outros tristonhos palmilham a vida até emudecerem. Pensei na crueldade que move alguns e na doçura que move outros tantos. Os duzentos mil milionários que nosso país engorda, de que jeito eles vivem, quais são suas conversas, seus desejos e o que passa no coração, no silêncio solitário da alma? Mattéi, filósofo francês refletindo uma vez sobre a barbárie humana faz a reflexão do i-mundo do mundo moderno. A i-mundice do mundo fragmentado em que vivemos, criou a formula necessária para a formação de um homem anestesiado na sua dissecação. Realidade tensa no dizer de Milton Santos. O indivíduo se dilui no coletivo/massa construído fora de mim, sem a minha participação, por desconhecido poder fazedor. Faz-se o corpo bonito, aperfeiçou-se a suavidades nas simetrias, mas o nó da solidão humana não desatou. Na massificação, da moda e da cultura, além de empobrecer a estética, oferece-se uma falsa aparência de segurança dum ego solitário. Quando um se movimenta, a partir de um comando, movimentam-se todos, com o mesmo dins, a mesma tinta no cabelo, o mesmo brinco, todos teleguiados por um poder sem rosto, sem pátria, sem alma...
Dona Zezé me provocou o pensar. Lembrei-me da Caverna Platônica. Dei-me conta da ilusão da qual estamos imersos. Enquanto tudo parece avançar, continuamos atormentados pela divisão. Divisão do Ser. É melhor dialogar com os animais, do que com seus iguais. O outro é o problema. Um problema insolúvel. Melhor não mexer. Aqui fico eu com meus gatos, meus cachorros...
Nunca mais soube de dona Zezé, mas sempre que dela me lembro, me pergunto, se como num romance de Kafka, ela não acabou fundindo-se à eles, “seus companheirinhos”, comendo suas comidas, dormitando e com eles sonhando, fazendo consultas ao veterinário... Será que ela já não era um deles e eu equivocadamente não pude ver?

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